Essa lista trata dos melhores faroestes já feitos. Mas qual seria o maior faroeste não feito? Um grande filme de Faroeste seria a adaptação de “Meridiano de Sangue”, de Cormac McCarthy, dirigida por Sam Peckinpah, com Marlon Brando no papel do Juiz Holden. Sem dúvida, esse longa encheria os olhos dos apreciadores da literatura bruta e realista do escritor americano. Bom bebedor e bom de briga, Peckinpah, costumava dizer que não engolia desaforos, tinha a verve violenta do típico cowboy, rústico e decidido. Peckinpah foi o autor de “Pistoleiros do Entardecer” (1962), que segundo Ephraim Katz é “um glorioso poema visual de amor ao Oeste americano e seu legado transitório”, e “Meu Ódio Será sua Herança”, clássico entre clássicos e, indiscutivelmente, um dos maiores faroestes da história do cinema. Ambos são produtos de um diretor disciplinado, inserido em sua arte e capaz de realizar a proeza de mostrar o velho oeste americano em sua totalidade: frio, cruel e sanguinário.
Nesse universo paralelo e impossível, Sam teria que suar a camisa para rebaixar ao segundo lugar o grande faroeste de todos os tempos, “Rastros de Ódio”. John Ford, autor do melhor filme do gênero americano por excelência, cabe, no mínimo duas vezes, em qualquer lista curta dos melhores faroestes de todos os tempos. Ver o seu xará, John Wayne, emoldurado pela porta da velha casa, capturada pela câmera precisa, sem dúvida, é uma das coisas mais intimistas e belas do cinema. “O Homem que Matou o Facínora” tem um lugar cativo no cânone, mas é a frase de efeito, uma das melhores da sétima arte, que imortalizou o longa na memória coletiva: “Quando a lenda é maior que o fato, publique-se a lenda”, que precisa reverberar para todo o sempre. De lenda John Ford entendia. Sua personalidade forte e seu mau humor eram históricos. Seu comportamento e suas atitudes transformaram ele próprio em uma lenda. Para evitar a edição equivocada de seus filmes, coisa que o incomodava sobremaneira, Ford desenvolveu uma técnica de montagem na câmera. Ele filmava o que achava necessário e, assim, impedia que, por determinação do estúdio, outras cenas fossem acrescentadas onde ele não queria.
O grupo dos grandes diretores de filmes de faroeste conta com o inusitado diretor italiano Sergio Leone. Consagrado pelo popularmente conhecido Spaghetti Western, o diretor do clássico “Era Uma Vez no Oeste” consolidou-se como um dos grandes do gênero graças a essa obra-prima do velho oeste.
Dentre todos, o mais carrancudo e imortal, também por estar por trás e na frente das câmeras, é o eterno Dirty Harry, Clint Eastwood. O ator da Trilogia dos dólares, ou Trilogia do homem sem nome: “Por um Punhado de Dólares” (1964), Por uns Dólares a Mais” (1965) e Três Homens em Conflito” (1966), dirigidos por Sergio Leone, que é um dos maiores diretores atuais, também imortalizou-se no faroeste com o impressionante e excelente “Os Imperdoáveis”. A direção segura de Eastwood, densidade de sua personagem e as ótimas atuações de grandes atores como Gene Hackman, Morgan Freeman e Richard Harris, além de um roteiro impecável, tornaram esse longa um marco do western.
O fato é que a lista dos grandes diretores e atores que compõem o universo dos filmes sobre o velho oeste, das personagens emblemáticas, com suas desventuras, lutas e jornadas terríveis e solitárias, é longa e formidável. “Rastro de Ódio” é, sem dúvida, neste estilo, a coisa mais bem realizada. O apuro técnico, a atuação do astro John Wayne, a fotografia primorosa, uma história poderosa e bem contada, colocam esse filme na lista dos melhores filmes de todos os tempos, extrapolando seu gênero de origem. Ainda que fosse possível, no universo hipotético sugerido no início deste texto, que Sam Peckinpah transportasse para a grande tela o magnífico “Meridiano de Sangue”, com seu vermelho cortante e cruel, real demais para qualquer diretor, com toda a sua capacidade de transpor uma violência gráfica das linhas do livro para o cinema, o diretor teria que se superar, e muito, para conter a força arrebatadora de “Rastros de Ódio”. Mesmo a imagem de Holden, enorme e imponente, caminhando como miragem no deserto, com seu escravo arrastado por uma coleira, uma das imagens mais cinematográficas do livro, o velho Sam teria que tirar do nosso imaginário o retrato cativante de Ethan, com sua estrutura contemplativa, frente a um dos mais belos horizontes já capturados.
Uma curiosidade sobre faroestes é que, para este gênero, os filmes mais antigos não são datados. A tese de que quanto mais velho melhor, parece valer para os clássicos filmados nas décadas de 1950 e 1960. Estão em um período da história mais próximo dos eventos que pretendem relatar. Ou seja, as atuações, o apuro técnico, a qualidade tecnológica e gráfica, o método, parecem reproduzir um comportamento que simula a época dos westerns. Por exemplo, o rancho Starrett é, provavelmente, muito semelhante às construções das fazendas do sul dos Estados Unidos da América dos anos de 1950 — 1960. Os galãs feios, tipos com afinidade ao homem rústico, o cowboy, ou homens elegantes em papéis de brutos incorrigíveis surgem nesse contexto, permitindo que o típico pistoleiro, o marshall ou o ranger, possa ser identificado com figuras como as de Willian Holden, Gary Cooper e John Wayne. Eles dão o tom, mas têm em sua formação, em seu estilo e em seu comportamento a rudeza necessária para os tipos do velho oeste. À medida em que os rostos e as atuações suavizam-se, os cowboys se distanciam dos reais e os westerns contemporâneos tornam-se filmes mais superficiais. Assim, a lista dos melhores filmes de faroeste tem uma densidade maior no século passado. Parece não se equilibrar com a tecnologia ou os novos costumes. Não basta apurar a técnica para fazer com que um estilo cinematográfico seja fiel à história. É preciso que sua rispidez natural, sua rugosidade orgânica e a brutalidade de seu tempo esteja presente no sentimento de seus realizadores.
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Duas coisas definem Ethan, personagem vivido por John Wayne: o amor infinitamente respeitoso que sente por sua cunhada e o ódio pelos Comanches. “Rastros de Ódio” é um filme sobre vingança e, também, uma jornada de formação. A porta que se abre dá início a uma história, uma aventura, como nos melhores romances. Poético e sublime, com uma das fotografias mais belas do cinema, interpretações intensas e dedicadas, “Rastros de Ódio” não é só o melhor faroeste já feito, é, também, um dos melhores filmes da história do cinema. O sucesso desse faroeste pode ser explicado pela sua sobriedade, ele possui um grande equilíbrio entre ação, drama e humor. Para vingar a perda da família e tentar resgatar a sobrinha capturada pelos índios, Ethan passa anos de sua vida ao lado de Martin, um jovem impulsivo, solitário, numa cruzada de obsessão e perdas. O ponto alto e aguardado é o confronto dos dois cruzados solitários com o cruel Comanche Scar, uma visão destoando no deserto árido e vermelho do Texas, por causa de seus sinistros olhos azuis e de uma carranca medonha e dilacerada. Ethan enfrenta o dilema de não permitir que sua sobrinha continue vivendo como uma selvagem, não consegue aceitar. Ao pé da entrada, limitada pela porta aberta, emoldurado pelo portal rústico da velha casa, Ethan despede-se em silêncio, certo de que não retornará mais. Não há nada para ele ali. Veja, quem matou Scar não foi Ethan. Mas ele, como um pai que se arrepende do desprezo que sentiu pela filha perdida, reserva-se o direito, a qualquer preço, de resgatá-la de seu infortúnio. Para isso enfrenta inclusive seu discípulo, que amadureceu e tornou-se homem sobre sua tutela distorcida e hostil.
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Formigas e escorpiões. Ou se vence uma batalha pela letalidade ou pela quantidade. Nos dois casos, há uma ciência regendo. Os primeiros minutos de “Meu Ódio Será sua Herança”, com o cast aparecendo sobre frames do filme em preto e branco, cada um como uma obra de arte, é um divertimento à parte. A sequência se encerra com o rosto de William Holden e o nome de Sam Peckinpah impressos na tela, sugerindo que ele próprio é o alter ego da personagem principal. Esse é o velho oeste com sangue nos olhos, literalmente! O título em português, radicalmente diferente do original, “O Bando Selvagem”, é primoroso e sugestivo, investiga a premissa apresentada logo no início do filme, que conhecemos por meio das lembranças de Pike (William Holden) e Thornton (Robert Ryan), antigos parceiros que agora se encontram em lados opostos. Tudo é real. Os rostos são mais sujos, a violência mais gráfica, a edição dinâmica maximiza a ação, as balas entram por um lado e saem pelo outro, vemos sangue jorrando. A câmera lenta traduz a dramaticidade, com eficácia. O início violento é um massacre! Os assaltantes, liderados por Pike, saem da cidade diminuídos. Paralelamente, um grupo de crianças simula, metaforicamente, o que aconteceu na cidade: poucos escorpiões foram massacrados por uma infinidade de formigas. Caíram numa cilada. O que vemos em seguida, magistralmente dirigido por Peckinpah, é uma saga digna do grande Cormac McCarthy, uma perseguição pela fronteira do México sem lei. “Todos sonhamos em ser crianças de novo. Até os piores de nós. Talvez principalmente os piores.” O bando se une ao cruel General Mapache, que enfrenta uma guerra civil contra seu inimigo Villa, e roubam um carregamento de armas, em troca de dinheiro para se aposentarem ricos. À sua maneira, os bandidos são amigos. O bando é heterogêneo, confuso, cheio de elementos medíocres, são párias, mas riem de si mesmos, esvaziam em conjunto uma garrafa de whisky e, veladamente, associam-se numa amizade fiel, invalidando o dito que afirma que “não existe honra entre ladrões”. E é por causa de um amigo que todos eles, os escorpiões peçonhentos e altamente letais, abandonam tudo para ser massacrados por centenas de formigas violentas. Mas não sem muita luta e muito sangue derramado.
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Ao som de “High noon” (Do not forsake me, my Darling) vemos primeiro Lee Van Cleef, sereno, observando, muito jovem. Ele tem o rosto perfeito para a maldade. Nos próximos minutos um bando de três assassinos aguarda o líder na estação de trem, o famoso bandido Frank Miller (Ian MacDonald). Quem vai chegar assusta o xerife da cidade, Will Kane (Gary Cooper). É um velho conhecido que vem acertar as contas do passado. Em “Matar ou Morrer”, o verdadeiro vilão é o relógio. Ao decidir ficar na cidade e enfrentar os bandidos em vez de passar a lua de mel com sua recém esposa, vivida pela belíssima e sempre ótima Gracy Kelly, bem longe da cidade, Will inicia uma saga particular sem sucesso. Precisa convencer os homens da cidade a ajudá-lo a derrotar o bando. O dilema de Will é real. Quando olha o rosto de uma criança, que brinca distraída com uma pistola de brinquedo, ele pensa que a melhor coisa do mundo é a inocência. O centro da história é o discurso do cumprimento do dever versus a autoridade dos políticos. “As pessoas defendem a lei e a ordem desde que não tenham que fazer nada. Talvez porque, no fundo não se importem.” Diz Mart, o ex-xerife. Antes que o tempo se acabe, é Will, sozinho, que enfrentará os habitantes da cidade e suas contradições. O bando é um detalhe.
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O grande silêncio, ocasionalmente quebrado pelo voo um mosquito, uma gota d’água ou um telégrafo, contrasta, fielmente, com a majestosa trilha sonora composta por Ennio Morricone. Essa dicotomia, esse conflito entre duplos concorrentes e distantes, permeia o clássico bangue-bangue espaguete, realizado pelo italiano Sergio Leone. Uma ironia que um dos maiores filmes do gênero americano por excelência fosse feito por um estrangeiro. Os italianos dominam bem a narrativa do velho oeste. Como exemplo, o famoso personagem dos quadrinhos, o ranger Tex, foi criado na Itália. Homens de sobretudo, sujos e elegantes, terríveis no olhar capturado pelo close up preciso de Leone, invadem a tela, ameaçadores. Com músicas próprias (Harmônica também produz sua música) Henry Fonda, Charles Bronson, Claudia Cardinale e Jason Robards fazem do longa uma exibição pessoal de talento e atuações marcantes. São personagens criadas para não serem esquecidas. Emblemáticas, elas saltam da tela. E, também, por causa de suas canções particulares, que as definem de formas distintas e hiper-realista, são seres maiores que seu tempo, são imortais. Harmônica, ou o pistoleiro sem nome, personagem de Charles Bronson, é a mais interessante. Sergio Leone cria uma grande figura, praticamente uma entidade inspiradora, um anti-herói completo. Harmônica tem história, presença, postura, mitologia e, à medida que o filme é executado, cresce na narrativa. É o confronto entre ele e o bandido frio Frank (Henry Fonda), matador de mulheres e crianças, a mando dos chefões da estrada de ferro, o ponto alto. Queremos saber quem é o pistoleiro misterioso e qual a sua função. Antes disso, as três personagens orbitam em torno da viúva Jill McBain, uma mulher linda e decidida que reúne os restos de uma tragédia para ganhar forças e viver no ambiente inóspito que escolheu. Por último e não menos importante, temos Manuel ‘Cheyenne’ Gutiérrez, vivido pelo excelente Jason Robards, uma personagem ao mesmo tempo cômica, ameaçadora e cheia de carisma. São de Cheyenne as melhores falas do filme. A cidade criada por Leone é uma das mais completas e bem-feitas dos filmes desse gênero. É suja, orgânica, funciona e vemos suas ramificações complexas. O figurino é impecável e o Oeste parece existir na sua forma original, pulsando, na cidade e em seus habitantes, que se misturam, se conectam, se afetam e fazem, juntos, história.
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O roteiro de David Webb Peoples trata da desconstrução do mito do pistoleiro implacável. Em “Os Imperdoáveis”, três personagens são importantes para entender esse ponto de vista: O Inglês Bob (Richard Harris), um ótimo personagem, muito bem construído e, infelizmente, muito pouco aproveitado, o xerife Little Bill Daggett (Gene Hackman) e o assassino bruto e covarde William Munny (Clint Eastwood). Com a aparição de Kid, o jovem aspirante a justiceiro vivido pelo ator Jaimz Woolvett, que narra as façanhas de William para ele próprio, ouvidas de seu tio desde sua infância, a ideia do matador fantástico é inserida na história. Durante a construção das personagens, especialmente a de William, somos levados a conhecer seu passado de assassinato frio, junto com seu parceiro Ned Logan (Morgan Freeman), que não deixa escapar detalhes de suas terríveis e cruéis ações. Esse bandido, que repete, periodicamente, duas frases como um mantra, “Claudia me endireitou”, referindo-se à mulher falecida e “Eu não me lembro. Estava muito bêbado”, é inspiração para o garoto que, influenciado pelas aventuras ouvidas e pelo apelo de um grupo de prostitutas que pagam uma pequena fortuna por vingança, quer colocar seu nome na lista dos heróis de chapéu e pistola. A desconstrução do mito do herói de faroeste, começa com a aparição de Inglês Bob. Uma personagem riquíssima, que tem como características principais uma indumentária negra e elegante, um revólver trabalhado e uma idiossincrasia: defender que uma rainha é mais importante que um presidente e, por isso, os ingleses são um povo mais civilizado que os americanos. Matador de chineses na construção da ferrovia, Inglês Bob subverte sua atuação violenta em histórias nobres contadas pelo seu biógrafo, que leva a tiracolo para anotar suas aventuras. Essa personagem, especialmente interessante e rica, sobretudo pela excelente interpretação de Richard Harris, é colocada em xeque pelo xerife Little Bill. As histórias sobre o Duque da morte, que o xerife insiste em chamar de pato (duck), são terrivelmente fantásticas. O primeiro das personagens representa um pistoleiro inverossímil, capaz de proezas impossíveis, e Little Bill corrige todo o exagero explicando para o escritor que acompanha o Inglês que, na vida real, um atirador preciso, se comporta de forma coordenada, com disciplina, mata a sangue frio e possui uma completa compreensão de tudo ao seu redor, de suas habilidades e de seus instrumentos. William Munny, por outro lado, é um monstro assassino. Seu passado o assombra, pois fez as piores atrocidades e sempre matou. Não existem regras para ele. Como ele mesmo diz: “Sempre tive sorte para matar gente”. Ele desconstrói a segunda personagem, o xerife Little Bill, quando prova que sua rotina é caótica, não tem regra, não age por uma cautela matemática, mas pelo puro e simples instinto de matar. Clint Eastwood subverte o gênero e apresenta um novo patamar para o velho oeste. Seu filme é o faroeste mais inteligente. Seu matador, é uma figura literária imensa, uma construção bem elaborada e profunda. Ao perceber a injustiça feita com o amigo, Clint nos coloca do lado do vilão, nos fornece um motivo para desejar que ele mate. E mata, numa sequência de falas memoráveis, inclusive aquele que subverte a lei com brutalidade, por vingança. Afinal, William já matou quase tudo que anda ou rasteja.
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Quem é Liberty Valance? Um motivo! O título desse faroeste antológico faz jus à história contada. Só precisamos conhecer a natureza de um homem que, ao mergulhar em uma causa pessoal, produz uma série intrincada de eventos ao seu redor. É assim com Ransom Stoddard (James Steward), um advogado pacato que decide ensinar uma cidade a usar seu poder de voto em vez da força bruta e das armas. Liberty Valance (Lee Marvin) é o vilão, Stoddard é o mocinho e Tom Doniphon (John Wayne) o equilíbrio para uma desarmonia calculada. Os dois últimos só se conectam graças ao interesse pela belíssima Hallie (Vera Miles). Como, em geral, acontece nos filmes de faroeste, o bem e o mal estão bem desenhados. Os vilões e os mocinhos são distintos e facilmente identificados. Essa maneira maniqueísta foi uma escolha de Hollywood para destacar questões políticas e defender pontos de vista históricos. Aqui não é diferente. Com uma grande carga política e cheio de moral nacionalista, “O Homem que Matou o Facínora” faz um discurso sobre a força das pessoas frente às decisões nas urnas, uma vez que o voto não é obrigatório e cada pessoa possui uma capacidade individual de promover a mudança. As desavenças de ideias fazem com que o filme convirja para um duelo estranho. O pistoleiro experiente e o advogado que mal consegue empunhar uma arma, o que dirá usá-la com precisão. Com a morte de Liberty Valance pelo durão Tom Doniphon, que cria uma situação de modo a fazer com que o autor do tiro fosse o pacato Stoddard, uma máxima atemporal é criada e repercute como um lema indelével: “Quando a lenda é maior que o fato, publique-se a lenda”. O herói de verdade é, ainda, o solitário homem que tem coragem para agir.
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Shane é uma variação de Shine (brilho). Um cowboy, num traje que destoa, surge no horizonte, sem dizer de onde vem e para onde vai, e decide tornar-se um fazendeiro. A decisão de mudar de vida, é uma alegoria para um anjo vingador que, sem avisos, toma a causa dos justos para si e a defende com sua capacidade natural de salvar inocentes. O brilho de Alan Ladd, no papel do pistoleiro Shane, cativa e comove. É sempre bom ver um valentão tomando uma surra. Essa é a função do herói de “Os Brutos Também Amam”, trazer dignidade para um povo que luta pelo direito à terra, coisa tão disputada e maculada. Do menino devoto que, por causa de sua ingenuidade, vê em Shane a reunião de todos os predicados do herói, até o dono do rancho e sua esposa devota, somos convencidos de que o forasteiro resolverá os problemas que os fazendeiros enfrentam com os donos de terra, que não aceitam a sua presença. O filme transmite uma mensagem direta, crua, antiga e certa: o trabalho conjunto funciona melhor que isolado. Duas cabeças pensam melhor do que uma e dois braços fortes são capazes de mover uma rocha (ou um grande toco de árvore enraizado), “às vezes a única coisa que resolve é nosso suor e força”. Na sequência, para combater a ameaça que paira, um dos fazendeiros fará uma besteira e será morto por um assassino de fora, que foi contratado justamente para isso. Há revólveres demais na cidade, prontos para serem usados. Ponto alto do filme, Shane faz um discurso atual sobre armas. Uma reflexão para os nossos tempos: “Uma arma é uma ferramenta. Nem melhor, nem pior que um machado ou uma pá. A arma é tão boa ou ruim quanto o homem que a usa”. O gatilho mais rápido do Oeste, o assassino contratado para matar o líder dos fazendeiros, Starrett, não é páreo para a luminosidade explosiva de Shane. Depois de realizar um ato de coragem para o qual parece ter sido destinado desde o começo, o herói vai embora da mesma forma que chegou, solitário. Mas, antes, deixa uma semente plantada no coração de seu pupilo.
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John Ford e John Wayne. Os Johns ficaram marcados pelos filmes de velho oeste. Por se entregarem tanto ao gênero, o faroeste acabou por se tornar um rótulo, o seu atestado de qualidade. “Rio Vermelho” é um filme de Wayne. Howard Hawks percebeu a força do gigante dos westerns e fez dessa parceira um filme memorável, uma pérola do cinema. Rio vermelho é um filme sobre o dilema humano da perenidade. Ao longo dos anos, Thomas Dunson, personagem de Wayne, abandona a força da juventude para tornar-se incapaz de realizar as tarefas que exigem força. Em contraponto, o jovem Matt Garth (Montgomery Clift) representa o novo homem, ele vê o mundo com olhos mais fraternos e com uma candura criticada por Dunson. Os opostos apresentados são metáforas para antigas questões essenciais. Força versus inteligência, bondade versus imposição, disciplina versus vontade, todas devidamente dispostas em extremos de um cabo de guerra que teima, desde sempre, em manter-se rígido e inquebrável.
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Sem dúvida, a heroína de “Bravura Indômita” supera os cowboys em léguas de distância. A força da mulher decidida, com uma meta que beira a obsessão, num mundo de homens, que não respeitam o sexo oposto, é algo maravilhoso de se ver. Os irmãos Cohen, ganhadores do Oscar por uma espécie de faroeste moderno, “Onde os Fracos não Têm Vez”, contam a história de Mattie Ross (Hailee Steinfeld), que tem apenas 14 anos, mas possui muito carisma e fúria. A garota, que perdeu o pai precocemente, tem uma missão: vingar a sua morte. Com uma quantia considerável de dinheiro, ela contrata o agente federal Rooster Cogburn (Jeff Brigdes), um inveterado alcoólatra, e, juntos, formam a dupla mais improvável dos faroestes. O filme, baseado no romance homônimo de Charles Portis, tem boas doses de ação e é cheio de humor, como se espera de um filme dos irmãos Cohen. Em sua trajetória, o par conta com a ajuda do ranger LaBoeuf, uma personagem complexa, sobretudo por não deixar claro o seu papel na tríade vingativa. “Bravura Indômita” é um legítimo faroeste e um filme dos Cohen, o absurdo está presente e o humor negro também. O filme também trata do romance, respeitoso e velado de dois homens por uma mulher que, desde cedo, demonstra força, beleza e decisão. E ela, obviamente, apaixona-se por um deles. Mas é a parceria e a cumplicidade entre Mattie e Rooster que cativa. Ela consolida-se ao longo do filme, sobretudo pelas sequências finais, onde a personagem principal é salva, por Rooster, da morte certa, o que demonstra que a garota é casca grossa e o velho federal um osso duro de roer.
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Delicado e detalhista, mais pelas duas grandes atuações de Brad Pitt e Casey Affleck, esse faroeste pastoso e visceral é um elogio à técnica. Com uma fotografia belíssima e uma construção de personagens magnífica, deve ser assistido como faroeste obrigatório. Jesse James não é Robin Hood, não tem senso de humor e parece não estar preocupado com sua carreira, como deveria. Robert Ford é um garoto com um brilho cinza nos olhos, vive em função de sua admiração por Jesse James e pela necessidade de mostrar que é importante. Toda a tensão do filme está na relação entre James e Ford e não na ação dos tiroteios nervosos, como nos clássicos. A atuação precisa de Brad Pitt, um Jesse James contemplativo e deslocado, num mundo onde não parece se encaixar, e o Ford sensível e delicado de Casey Affleck, ao mesmo tempo doce e repugnante, são os pontos altos do longa, somados à bela fotografia e a trilha sonora primorosa. A única coisa que incomoda, um pouco, é que existe uma aura Malickiana na obra, como uma sombra que se impõe. Talvez uma homenagem pensada. Não importa. O filme tem grande elenco, dentre eles, com participações marcantes, estão o ganhador do Oscar Sam Rockwell, Jeremy Renner e o eterno cowboy Sam Shepard (na pele do irmão de Jesse, Frank James). Para realizar a notória rivalidade entre James e Ford, marcada pela perturbada impressão do segundo sobre o primeiro, a cena do crime, que dá título ao filme, é um condensado sobre um inquietante discurso em torno do equilíbrio. Aqui, o cinema discute a si próprio, discute a tênue linha entre uma atuação medíocre e uma representação digna de Oscar. Jesse James, de pé pisado em uma velha cadeira, elevado do chão em relação aos demais, seus algozes, tenta limpar um quadro na parede, certo de que algo está na iminência de acontecer, por isso equilibra-se entre o seu passado glorioso e um futuro terrível. Observa o cano da pistola de Ford estender-se em sua direção, sem hesitar, e compreende que sua jornada terminou. Dá a deixa para a personagem de Affleck colher os frutos podres da ruína que arquitetou. Afinal, quem venceu?