Gosto de pensar que Paulo Vanzolini está para o samba como Pedro Nava está para a prosa memorialística brasileira. O primeiro era zoólogo; o segundo era médico. Em ambos, há de comum o gosto pela arte como hobby, e a ciência como profissão. São casos raros de cérebros poderosos, capazes de fazer-se respeitar, simultaneamente, tanto no meio acadêmico quanto no artístico.
A discussão que proponho não é, de nenhuma maneira, trivial. Sabidamente, estamos a viver num mundo cada vez mais cindido pela objetividade técnico-científica, de um lado, e pela subjetividade estético-artística, de outro. Parecem até vasos não comunicantes de um mesmo órgão: o cientista olha para o artista como um degenerado a perder tempo com tarefas sem utilidade prática, ao passo que o artista julga o cientista um ignorante insensível à cultura humana. O resultado é a perda progressiva do ideal humanista cunhado ainda ao tempo do Renascimento, que nunca viu obstáculo ao interesse concomitante nas artes, na filosofia e na ciência. Não fosse assim e Leonardo da Vinci não teria sido exitoso nos seus estudos de anatomia humana paralelamente ao brilho do seu talento como pintor.
Dessa maneira, Pedro Nava e Paulo Vanzolini estão unidos pela história de uma vida dedicada à ciência como à arte. Ambos se aproximam daquilo que poderíamos considerar como o perfil do “intelectual completo”, homens cujo engenho prodigioso não encontrou limites nos afazeres a que se propuseram, fossem eles de cunho científico ou artístico.
Mas há uma peculiaridade na biografia de Vanzolini que torna sua trajetória de cientista-artista particularmente digna de nota. Ele foi um crítico da própria obra. Nunca escondeu, por exemplo, seu desapreço à sua composição mais famosa, “Ronda”, de 1951. Por mais de uma vez, rejeitou-a publicamente, acusando-a de ser “piegas”.
Curiosamente, não obstante a opinião do compositor, tenho “Ronda” em alta conta. Considero-a perfeitamente habilitada a figurar entre as mais belas letras do cancioneiro nacional. Uma rápida leitura dos seus versos justifica a escolha:
De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar
No meio de olhares espio em todos os bares
Você não está
Volto pra casa abatida
Desencantada da vida
O sonho alegria me dá
Nele você está
Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, esta busca é inútil
Eu não desistia
Porém, com perfeita paciência
Volto a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando um dadinho
Jogando bilhar
E neste dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João
A originalidade de “Ronda” já se encontra na sua proposta de gênero: narrar a angústia que sucede à perda de um amor, só que, desta vez, desde o ponto de vista da mulher. Há muitos casos de poetas que buscaram retratar o amor passional, que termina em tragédia. Poucos, no entanto, ousaram captar a sofreguidão feminina de um amor doentio e fatal. Foi o que fez Vanzolini com indiscutível beleza poética em “Ronda”, colocando-a, ainda que a contragosto, no rol das principais composições do samba brasileiro.
Mas a composição mais representativa do interesse do cientista Paulo Vanzolini pela arte é, sem dúvida, “Samba erudito”, canção que integrou o álbum “11 Sambas e uma Capoeira”, de 1967, e ficou famosa na voz de Chico Buarque:
Andei sobre as águas
Como São Pedro
Como Santos Dumont
Fui aos ares sem medo
Fui ao fundo do mar
Como o velho Piccard
Só pra me exibir
Só pra te impressionar
Fiz uma poesia
Como Olavo Bilac
Soltei filipeta
Pra ter dar um Cadillac
Mas você nem ligou
Para tanta proeza
Põe um preço tão alto
Na sua beleza
E então, como Churchill
Eu tentei outra vez
Você foi demais
Pra paciência do inglês
Aí, me curvei
Ante a força dos fatos
Lavei minhas mãos
Como Pôncio Pilatos
Desnecessário dizer que, fazendo jus ao título da composição, só mesmo um sambista erudito como Paulo Vanzolini poderia ter condições de fazer poesia a partir de referenciais tão variegados: Santos Dumont e Auguste Piccard, ambos cientistas e inventores, respectivamente, do avião e do batiscafo; Olavo Bilac, poeta parnasiano brasileiro; Winston Churchill, estadista britânico; Pôncio Pilatos, personagem bíblico. Definitivamente, não é fácil articular um conjunto de referências díspares, para cantar a frustração do homem que, desejoso de impressionar a mulher pela qual se enamorou, tenta, debalde, todo tipo de medida (poesia, ciência, endividamento, até a taumaturgia de andar sobre as águas!). Contudo, se as proezas do eu lírico restaram malsucedidas, por certo não a erudição do compositor: “Samba erudito” é outra das mais perspicazes letras de samba do cancioneiro nacional.
No painel da crítica musical brasileira, é comum atribuir a Paulo Vanzolini, com justiça, o mérito de, em suas composições, ter se constituído num cronista da cidade de São Paulo, a narrar as desventuras da boemia paulistana. Mas talvez seja a hora de observá-lo também como o zoólogo renomeado, de modo a perceber o quão importante foi a sua paixão pela ciência no desenvolvimento da sua carreira de sambista. Talvez seja a hora de recordar o alerta do memorialista Pedro Nava, a quem comparei Vanzolini no início do texto, que, em seu “Baú de Ossos”, pontificou:
É o que acontece com a maioria dos nossos grandes médicos, cujas vidas são geralmente abordadas por biógrafos com luvas de borracha que desinfetam tudo que existe de humano para só ensaiar o mito esterilizado que anula o homem. Onde estais, Miguel Couto, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas? Quem vos poderá conhecer? dentro das roupagens de santos com que vos afublaram e que tanto vos desfiguram. Esquecem que cada homem só vive e é grande quando mostrado integralmente.
O desagravo de Nava aplica-se perfeitamente a Paulo Vanzolini, que era médico de formação e zoólogo por escolha. Pois é somente na conjunção dos méritos que unem indissociavelmente o cientista ao artista que se pode perceber a erudição concisa do seu samba, a integralidade humana da sua obra enquanto compositor e pesquisador.