O primeiro casamento gay a gente nunca esquece

O primeiro casamento gay a gente nunca esquece

Com algum atraso no fuso horário da história, compareci ao primeiro casamento gay. Eram duas noivas radiantes e livres. “Que desperdício”, disse um sujeito, ao meu lado, bebericando antes da hora, desperdiçando perdigotos e uma oportunidade de ouro para permanecer calado. “Eu pegaria”, insistiu, como se nos conhecêssemos. Quem tinha convidado aquele cara? Levantei-me e fui me sentar lá no fundo, perto da mesa de sobremesas, onde comi um docinho enquanto ninguém observava.

Ambiente limpo. Cheirinho de flores do campo. Feijoada no fogo. Chope gelado. Almoço para 60 talheres. Cerimônia íntima, foi o que me disseram, só para “os mais chegados”. Não sabia que alguém se achegasse tanto a mim, a ponto de me convidar para um evento tão crucial quanto um matrimônio ou um fuzilamento. Não tinha padre. Não tinha pastor. Não tinha culto ecumênico, nem rissole frio. Perfeito. Tudo seguia bem. O sábado parecia promissor, sem espetáculos de fé cega e de faca amolada.

Um dos padrinhos cantou, à capela, “Quem sabe isso quer dizer amor”, uma canção que ficou muito comovente na voz de Milton Nascimento. Até eu, que mais parecia um rissole tamanha a frieza dos últimos anos, me emocionei. “Homem que é homem não chora.” Não dava pra acreditar. Aquele camaradinha tinha voltado. Acho que me escolhia para Cristo. Pensei em socá-lo no queixo, mas, eu tinha feito um pacto de não violência com o universo, desde o dia em que fugi de uma briga no pátio da escola.

Fazia tempo que eu não frequentava casamentos, nem execuções capitais. Houve uma época da minha vida em que eu ia a casórios todo final de semana. Um inferno, se considerarmos que, para os convidados, cerimônia de casamento é tudo a mesma coisa; só mudam os noivos e a impaciência dos celebrantes.

Certa vez, presenciei um enlace matrimonial tenso. A noiva, enfiada dentro de um tubinho branco, era um dos maiores espetáculos da Terra em matéria de natureza humana. O corredor da paróquia era chique, ornamentado e comprido, graças a Deus. Um quarteto de cordas tocava “The long and winding road”. Nada mais apropriado para o momento. Cento e cinquenta metros de entrada triunfal sob ereções disfarçadas e gotinhas de sêmen grudando no tecido. Mamífero nato, fiquei fortemente vidrado no decote voluptuoso da moça, cujas tetas satânicas, de mamilos pontiagudos, ameaçavam ferir, cegar de amor um homem, caso se desprendessem de forma abrupta do arcabouço da lingerie.

Senti um frio percorrendo-me a espinha. Padecia de um remorso fugaz por desejar a mulher do próximo dentro de uma filial do Vaticano, sob os olhares atônitos de reprovação de anjos e santos. O que é que eu podia fazer? Eu era jovem, idiota, um mancebo que sopitava testosterona pelos poros.

Quando a misse chegou ao altar, o noivo se atrapalhou todo, lascando um beijo na testa do sogro e apertando, formalmente, a mão da amada. Tudo errado. Pobre nubente. Que gafe. Tinham ensaiado tanto para aquele momento. Os convidados gargalharam. Quando o casal, finalmente, se organizou e se aproximou do padre, Vossa Reverendíssima foi logo dizendo que igreja não era clube e que candelabro não era luz do sol para que a moça viesse se bronzear. O silêncio foi sepulcral. Um cara gemeu lá no fundo, atrás de uma pilastra. Pela minha experiência em punheta, aquilo foi um orgasmo.

Fiquei indignado com o padreco. Senti uma vontade rotunda de surrá-lo com um castiçal de prata, mas, me lembrei do juramento dos tempos de colégio. A mocinha chorava borrando a maquiagem, respingando lágrimas de rímel sobre o colossal par de pomos. Início dos anos 1990. Ainda era muito cedo para afirmar que o silicone estava fazendo um tremendo bem à humanidade, principalmente, aos cirurgiões plásticos. O casório prosseguiu sem outros deslizes. O vigário acelerou o passo, fazendo um sermão mixuruca e terminando a celebração mais rápido que o evacuar de um ganso. Há males que vêm para o bem: os noivos receberam os cumprimentos no local e eu vazei mais cedo para um bar.     

Perdoem-me. Estou divagando além do pretendido. Vamos focar no casamento gay, o primeiro dentre vários, eu suponho. Espero ser digno de outros convites, pois, implicitamente, significariam para mim que já não sou aquele indivíduo tolo, cruel e preconceituoso de outros tempos. Pois, então: a mãe de uma das noivas não deu as caras. Mandou avisar que amava a filha mais do que tudo nessa vida, porém, não podia consentir que ela se casasse com uma pessoa do mesmo sexo. Portanto, aproveitaria o sábado livre para dar faxina em casa, encaixotar objetos e liberar o quarto que era da filha caçula, que tinha cismado — ela não entendia por que, ela não sabia onde foi que tinha errado na criação da menina — em contrair núpcias com outra mulher. A expressão “contrair núpcias” remetia a algo contagioso. Quem sabe, aquilo só queria dizer amor.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.