Depois da exibição de “Vale o que vier” (Globo), especial que mesclou o filme “Tim Maia” e depoimentos de outros artistas e personagens envolvidos na vida e obra do saudoso cantor, as redes sociais foram dominadas por comentários sobre… Roberto Carlos.
Exatamente: mais que o próprio homenageado, o personagem mais comentado foi o “rei”.
O que mais gerou polêmica, cruzando o longa-metragem e o “docudrama” da TV, foi a exclusão de uma cena em especial: a sequência em que Tim Maia, depois de algumas tentativas frustradas, chega ao camarim de Roberto Carlos e toma um verdadeiro chá de cadeira, depois de ganhar “botas que sobraram”, e é humilhado por um assessor de Roberto Carlos, que lhe atira dinheiro amassado.
Na produção televisiva, esse trecho da película foi substituído por falas de Nelson Motta e do próprio Roberto Carlos afirmando que RC ajudou Tim nessa fase de sua carreira. Se, conforme grafaram alguns artigos hospedados em grandes portais, o objetivo era “limpar a barra de Roberto Carlos”, o tiro saiu pela culatra.
A partir daí, tudo que se possa imaginar foi imaginado, e dito.
Publicações especializadas focaram na “história por trás” da edição feita pela emissora; jornalistas do meio aproveitaram para ressuscitar outras polêmicas (não importa se fatos ou boatos) envolvendo RC; comentários nas redes sociais adotaram o tom de “eu sempre soube”.
Começou uma confusão entre situações pontuais e trajetórias, talento e sagacidade, obras-primas e legado, voz e artista: Tim Maia foi alçado à condição de “coitado”, “prejudicado”, “perseguido” e alguém que “pagou o preço” por “não se vender”, sendo o “verdadeiro gênio”. Roberto Carlos, acusado de tudo — “invejoso”, “fabricação da Globo”, “aproveitador”, “impostor” — e um pouco mais: trabalhou para fazer com que Tim Maia não tivesse o sucesso que merecia.
Balela. E desde já mais um caso clássico de como não são apenas as crianças que se encantam por contos de fada, heróis e vilões.
Mauro Motta, produtor musical e compositor, é alguém que viveu de perto todo o imbróglio que envolveu a primeira gravação de Tim Maia e seus tropeços até conseguir lançar o genial disco de 1970. Em sua página pessoal no Facebook, Motta contou que Roberto Carlos insistiu com Evandro Ribeiro, presidente da CBS, para que a gravadora produzisse um compacto com Tim. Esse lançamento aconteceu.
Motta resume: “Se alguém tentou ajudar o Tim nessa caminhada de início, para que ele gravasse, esse alguém foi Roberto Carlos. O resto é conversa fiada”.
No entanto, conversa fiada parece vender mais.
Como disse Erasmo Carlos num dos trechos da produção, muitas coisas fazem parte das “lendas do Tim”. Independentemente de serem alimentadas pelo próprio cantor, por seu biógrafo ou colegas, fato é que muitas histórias, se contadas da forma como aconteceram, não teriam tanta repercussão.
Essa sobreposição de trajetórias faz lembrar outro duelo de ídolos brasileiros, um deles também chamado de Rei: Pelé e Garrincha.
O mesmo veneno destilado contra Roberto e a mesma compaixão destinada a Tim Maia acontece no caso dos campeões mundiais. O alcance vocal de Tim, inegavelmente maior que o de Roberto, e os imparáveis dribles de Garrincha, mais espetaculares que os de Pelé, parecem suficientes para que seus fãs optem por quem é melhor. Mas é o final melancólico e até certo ponto trágico de Mané e do “Síndico” o que mais os aproxima.
Dois anos atrás, veio à tona uma “entrevista perdida” de Garrincha. O material, de 1981 (pouco antes de sua morte), exibe um ex-atleta magoado e agonizante.
Um dos temas da conversa foi Pelé. Perguntado se “ele foi mesmo o melhor do mundo”, Garrincha respondeu que “[Pelé] foi um jogador bom, ele tinha muita sorte” e que “tinha gente boa do lado dele para dar a bola”. Momentos depois, a pergunta foi sobre se eles mantinham contato, e Mané se exaltou: “Que nada! Ele é um safado, virou estrela agora”.
Um ano antes da publicação dessa entrevista, quem botou lenha na fogueira foi Diego Maradona. De passagem pela Itália, o genioso e genial argentino afirmou que Elza Soares, mulher de Garrincha, lhe revelou que Pelé negou ajuda ao ídolo botafoguense. “Pelé estava na crista da onda e poderia ter feito alguma coisa”, disse Diego.
O mesmo acontece com Tim Maia em relação a Roberto Carlos: o suposto desprezo revelado por Maradona encontra eco na famigerada cena excluída do filme, e as afirmações de Garrincha sobre o Pelé “sortudo” tem semelhança com o Tim que, ao longo de toda sua vida, viu Roberto Carlos como sua “Nêmeses”.
Um exemplo simples: no DVD “Tim Maia Pra Sempre, Ao Vivo”, que mescla um show do cantor com depoimentos, falando sobre um assunto qualquer Tim vira pro lado e diz: “eu que lancei Roberto Carlos”.
A versão do público é muito parecida: como aqueles que acham que a voz de Tim Maia supera todos os discos de Roberto Carlos, não são poucos os que falam que “Garrincha foi muito melhor” e que “esse tal de Pelé não vale nada”. Afirmam que a mídia protege Pelé, e que Garrincha foi esquecido pela grande imprensa. Que Pelé é ganancioso, e Garrincha, inocente.
Roberto Carlos e Pelé, sem dúvidas, tiveram (têm) uma grande assessoria de imprensa e agências de marketing focadas em “proteger” suas imagens. Ambos, também, extrapolaram seus universos profissionais e se tornaram empresários e garotos-propaganda ambiciosos. Também tiveram polêmicas com paternidade. E os dois também deram diversas “bolas fora” no que tange a posicionamentos, especialmente políticos.
Em resumo, podem ser acusados de muita coisa, pessoal e profissionalmente. No entanto, dois pontos precisam ficar bem claros.
Primeiro: Roberto Carlos e Pelé alçaram suas condições pelo que fizeram nos campos e nos palcos, e não pelo que “a Globo” disse, ou diz.
Afinal, não é invenção que Pelé deu um chapéu dentro da área e marcou um golaço numa final de Copa, na Suécia, aos 17 anos. Não é invenção que Roberto Carlos foi o primeiro estrangeiro a vencer o prestigiadíssimo festival de San Remo, na Itália. Não é invenção que Pelé seja o único jogador a ostentar três títulos de Copa do Mundo. Não é invenção que Roberto Carlos vendeu mais discos que os Beatles na América Latina.
Algo que também deve ser ressaltado é que nem Roberto nem Pelé são responsáveis pelos percalços que Tim e Garrincha passaram, a maioria destes consequências de escolhas que ambos fizeram. Em resumo, Roberto e Pelé estão longe de ser santos, bonzinhos ou “exemplos”. Mas por que Tim e Garrincha estão sendo tratados assim?
Talvez a melhor forma de se resumir trajetória e a personalidade de Tim Maia esteja em outra cena de sua cinebiografia.
Tim diz a Fábio: “Tu tem inveja do meu sucesso, tu queria ser eu”. E Fábio responde: “É verdade, eu até queria ter o teu sucesso, ter só uma casquinha do seu talento. Sabe por quê? Porque se eu tivesse não estaria na merda que você tá. Teu maior inimigo é você mesmo”.