Eu me lembro que quando Tereza comentou que o filho havia morrido, não existia mais aquele pranto estridente que tenta expulsar pelos olhos a dor que o peito não consegue comportar. Não caiu uma lágrima. Era só um olhar distante, carregado de angústia e saudade. Não que isso fosse pouco. Mas já fazia quase 10 anos que o sangue do rapaz havia pintado o asfalto de vermelho. Eu ainda era muito jovem e me assustava com relatos assim. A mãe da minha amiga, para quem Tereza trabalhava passando e engomando roupas, dizia: “virou anjo, conforme a vontade de Deus”, para depois, distante dos ouvidos de Tereza, nos dizer que ele mereceu o que teve. “Estudem, meninas”, ela repetia, em alto volume, como se essa fosse uma escolha e não uma condição praticamente inata para quem nascia em berços como os nossos.
Tereza seguiu passando e engomando por anos. Sempre que eu ia lá a observava, tentando decifrar aquela mulher de pele negra, braços rijos e alguns cabelos brancos que escapavam do lenço florido. Era a pessoa mais calada que conheci. E eu nunca soube se ela sempre fora assim ou se morrera um pouco com aquela bala que atravessou seu filho. Nas poucas palavras que ouvi de sua boca, dizia que o garoto havia sido vítima da violência que assolava seu bairro. O patriarca da casa revirava os olhos, como quem desacreditava daquilo. E Tereza talvez tenha seguido o restante da vida em seu inferno particular, que alternava o “virou anjo” proferido na sua frente com o “santo não era” esbravejado pelas costas.
Tereza voltava todo dia para seu bairro de maioria pobre e, portanto, de maioria negra. Ali era obrigada a harmonizar o aconchego das boas lembranças com um futuro sombrio, sacramentado pela truculência que rondava a região. O mesmo chão riscado pelo giz no qual as crianças pulavam amarelinha era palco para corpos que vez ou outra caíam sem vida e sem chance de se explicar melhor. Tereza não foi a primeira mãe que chorou ali. Nem a última a carregar nas costas o luto imposto por uma nação que insiste ainda hoje em reverberar os grilhões da escravidão. Não foi a única a ter seus pais marginalizados em oportunidades periféricas, seus avós objetificados pela força bruta da mão de obra gratuita, seus antepassados amontoados em fazendas que fizeram prosperar senhores, seus descendentes marcados pela desigualdade que persevera de geração em geração.
Vidas negras importam. Vidas negras importam e merecem a oportunidade de trilhar os mesmos caminhos que levam à ascensão social que protege ricos e brancos das humilhações cotidianas tão naturalizadas num país como o nosso, que desonra sua origem. Vidas negras importam e merecem ocupar lugares nas escolas, nas feiras culturais, nos plenários, nas TVs, nos livros, nas vitrines e em todo o resto que as coloque em evidência, em espaços onde o coro e a luta falem cada vez mais alto. Vidas negras importam e não merecem o contra-argumento imbecil de que “todas as vidas importam”, que tenta, em retórica desonesta, colocar no mesmo patamar o que há séculos está desnivelado. Vidas negras importam e tentam ser ouvidas, enquanto “vidas brancas” se esmeram em dividir protagonismo com uma causa que não lhes pertence e insistem em colocar o racismo na clandestinidade.
Mas o racismo não é clandestino. É escancarado e banhado por doses de legalidade que permitem que ele ocorra à luz do dia e não se iniba com câmeras que o registrem espancando até a morte, atirando na cabecinha ou apertando o botão do elevador para se livrar do filho da empregada. Existe nas portas que se fecham, nas favelas de realidade violenta, majoritariamente ocupadas por negros, em oposição aos recintos blindados abarrotados de brancos. O racismo existe nas entradas e saídas de lojas, nas chacinas, nos baculejos, nas estatísticas, nos vídeos de abusos de autoridade contra negros, contrastando com o respeito dispensado a brancos insolentes. O racismo existe forte, pesado, insano, e não há postagem da famigerada fala do Morgan Freeman que o apague nem negacionismo de expoentes da República que o camufle. Existe, mata, constrange, segrega e maltrata há séculos. Busquemos a redenção.