A minha vida aqui é uma desgraça

A minha vida aqui é uma desgraça

A minha vida é uma desgraça. É problema o tempo todo. Não tenho paz para absolutamente nada. Um cano que vaza. Um disjuntor que fecha curto. A chuva que molha. O sol que esquenta. Os raios que caem duas vezes no mesmo lugar. Os furibundos da bancada da bala. Os moribundos que morrem de gripe. Os marimbondos que me beliscam as bolas. Dói muito mais em mim do que em vocês: todo mundo vai morrer um dia. Até o Elvis. Até as minhas bolas. A Inês, não. A Inês já é morta faz tempo, muito antes do ódio e da loucura brotarem no peito da gente.

“O indivíduo em questão possui coração”, concluiu o laudo técnico do Einstein. Mas, isso também é relativo. Passei nos exames pirotécnico, psicotécnico e nos testes admissionais antissépticos que me diagnosticaram limpo, real e apto para assumir este cargo da maior envergadura. Que ninguém me acuse de ser um homem mole e sem sentimentos. Sinto que vou ganhar um milhão. Ou renunciar ao cargo. Ou acabar preso. Ou cortar os pulsos com um prestobarba.

Deus é maricas. Custava estalar os dedos e acabar logo com tudo? Não tenho sossego um dia sequer. Um jet-ski que se afoga. Uma ema que não me ama. Correligionários que não se bicam. Basta. Estou no meu limite. Chega. Pelas chagas do Inri Cristo — meu chegado — já chega. Já pensei em construir um muro entre esse povo e eu. E plantar cacos de garrafa por cima, para que ninguém fuja da própria insanidade. Não posso nem sair na rua para comer um pastel, para tomar um caldo de cana, para procurar Jesus na goiabeira. Logo aparece um miserável pedindo pão, emprego ou moradia. A culpa não é das estrelas. A culpa é da imprensa. Sempre tem um desses urubus querendo comer o meu rabo. Carniça se come pelos olhos, seus canalhas.

Eu admito: às vezes, me excedo no uso de piadas para veadinhos e palavras de baixo calão. Mas, o baixo escalão adora. No fundo, no fundo, quem não tem hemorroidas tem algum tipo de preconceito. Ou mau gosto. Ou culpa. Ou dinheiro no banco. Eu não. Eu pago tudo em grana viva. Os meus sonhos não têm futuro. Tenho pressa de ser incapaz. Sou um homem do povo. E a voz do povo é a voz de Deus, ainda que carregada de um português ruim. Possuo um vocabulário em torno de quinhentas palavras. É o bastante para ofender a gramática, para falar ao coração das pessoas e deixar claro o quanto eu odeio tudo isso. Acusam-me de barbaridades. Discordo das concordâncias verbais, nominais e numerais. A única “rachadinha” que eu conheço é rosa-choque e atende pelo nome de Susie.

Enquanto todo mundo lia, eu torturava com choque. Eu salvava a nação dos inimigos imaginários. Eu cagava no mato. Eu punha fogo na floresta. Eu servia pinga pra índio. Eu tirava couro de onça. Eu fazia um gato. Eu enlouquecia os oficiais da ativa. Estou cheio de tudo. Já não sei se ainda quero sacar a arma no salão e matar o Belchior. Ele é apenas um cantor. Eu não. Eu eu sou a autoridade máxima desse condomínio. Quero voltar para a vida sossegada dos tempos de condômino inadimplente do baixo clero. É só isso que eu quero. Curtir o funk numa boa. Fazer churrasco com os picadinhos de vocês. Usar a piscina sem ser incomodado. Será que ninguém me entende? Eu cansei de ser síndico dessa joça.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.