Todos somos vítimas do massacre no Charlie Hebdo

Todos somos vítimas do massacre no Charlie Hebdo

Estamos todos juntos. Profundamente ligados. A despeito daquilo em que nestas horas acreditam os assassinos e os canalhas, os indiferentes e os superficiais, os cegos voluntários e os simplesmente estúpidos, somos todos uma coisa só. E esta coisa tem sofrido faz tempo, padecido como agora, no choque de uma covardia impensável, na violência medonha de um novo ataque burro e cruel.

Somos semelhantes. Iguais. Seremos sempre. Apesar de todas as nossas diferenças, nós ainda somos seres idênticos. Bichos afoitos da natureza, descobrindo seu próprio jeito de viver e de morrer.

É claro que somos distintos, diversos de toda sorte. Nossos pés têm formas desiguais, pisam de modo e força e ritmo diferentes em terrenos variados. Rumam para cantos separados. Mas ainda somos tão parecidos!

A diferença sobe por nossas pernas e se esparrama. Nossas topografias corporais divergem, nossos joelhos nos cobram o peso do caminho em moedas singulares, nossos sexos se estranham em gênero, forma, tamanho, intenção, entusiasmo mas, se deixarmos, eles dão um jeito e se atraem e se completam.

Nossos intestinos, rins, bexigas, pulmões e outros órgãos internos exibem capacidades desiguais, mantêm ritmos divergentes de funcionamento, adotam padrões variados de tolerância. Entre nós, há os que se indispõem com uma mera sopa de mandioca e os que comem pedra e arrotam borboletas brancas de saúde. Somos tão diferentes em nosso por dentro e, no entanto, nossas semelhanças saltam corpo afora em jatos escandalosos de vida.

Os braços que temos enlaçam empreitadas sortidas, alcançam miradas díspares, exibem largura, extensão, força, cores e capacidades várias. Mas continuam os mesmos braços que aproximam e afastam, abraçam e atacam, com mãos que afagam e agridem. Os mesmos que tateiam agora o amanhã que a Deus pertence.

Somos tantos rostos se iluminando e se fechando por razões infinitas, ora similares, ora opostas. Nossas bocas sorriem ou vociferam a partir de impulsos tantos, porta-vozes de juízos que se criticam e se censuram porque no fundo padecem da mesma ânsia grandiosa de expressão.

Nós somos iguais. Levamos olhos que miram vistas únicas, horizontes maiores ou menores, objetivos vis ou edificantes. Mas que são as mesmas janelas da alma que resiste lá dentro, tocada pelos sons e cheiros descobertos por nossos ouvidos e narinas, alma servida pelas escolhas que fazemos com as pontas dos dedos.

Estes ombros são os mesmos que suportam o peso do choro alheio e carregam o piano do mundo. São os mesmos da indiferença demonstrada quando nos faltam sentimentos ou precisamos escondê-los.

Nossas cabeças deliram sonhos incomuns. E os nossos corações, ah… esses se abrem e se fecham a partir de estímulos insuspeitados e desiguais. Trabalham em velocidades variadas, amam em intensidades diversas. Mas são exatamente os mesmos operários capazes e insistentes, batendo no peito sua vocação incansável para a vida e seu movimento furioso.

Você e eu somos “o próximo” a quem se deve amar. Amemo-nos, pois. Nós estamos aqui para nada, senão para isso, rumando para o mesmo lugar.

O resto é desvio, intolerância, violência exasperada e estupidez praticada em todos os níveis — de insultos verbais na Internet até atentados bárbaros como o do jornal Charlie Hebdo. O impulso de atacar e lesar e calar o outro é o mesmo. E as vítimas são as mesmas de sempre: nós. Cada um de nós. Até quando? Para quê?

 

André J. Gomes

É professor e publicitário.