Os homens de Marte que estupram as mulheres de Vênus

Os homens de Marte que estupram as mulheres de Vênus

Os hormônios tinham sido generosos com Susan. Seu corpo era um avião; sua beleza, quase um crime. Encontramo-nos numa cafeteria. Tocava um tango do Chico, em “A Ópera do Malandro”. Eu gostava mais de café do que de gente. Chico era hors-concours. Ela também. Homens e mulheres babavam ao vê-la. Percebi que não tinha o mesmo viço no olhar, uma particularidade que em nada comprometia a sua formosura. Por sinal, as nuanças de amargura tornavam o seu rosto ainda mais impressionante.

Brinquei. Unhas pintadas com as cores da bandeira. Nada mais brega. Tremia as mãos jovens, quase perfeitas, derrubando açúcar fora da xícara. Fez menção de acender um cigarro, mas, claramente, lembrou-se da minha aversão ao fumo. Pediu desculpas, tentando encontrar um prumo. Declarou-se 100% descontrolada. Sentia-se péssima naquela manhã. Era uma terça-feira calorenta. O fim do lockdown e a atenuação da Pandemia de Ódio tinham levado mais público às ruas, aos bares, aos guetos, às praças, fazendo renascer a cidade, finalmente.

Contou-me que, no sábado à noite, fora convidada para uma festinha no apartamento de um colega da faculdade, um novato. Não conhecia muito bem o sujeito, mesmo assim, aceitou o convite. Fazia meses que não se aglomerava com as pessoas. Contando com ela, eram oito os integrantes: cinco rapazes e três moças. O encontro seguia regado à boa música, conversa divertida, bebidas `a vontade e alguma droga ilícita que ela preferiu não experimentar.  

Tomei o meu sem adoçar. Estava evoluindo na arte da degustação de cafés. Faltava aplicar aquele novo talento amortizando os amargos da vida. Havia um lapso, um hiato na festa. A última coisa de que Susan se lembrava era de uma tal brincadeira de adivinhação, que quase matou sufocado um dos rapazes, de tanto gargalhar. Daí por diante, houve um apagão na sua mente. Acordou no domingo, às dez, deitada numa cama enorme com três caras. Todos estavam nus. Um deles era o seu colega de curso.

Vestiu-se com pressa. Catou os trecos. Ganhou a rua. À noite, perdida em pensamentos que não convinham, ligou para o anfitrião. Avisou que não se recordava dos fatos. Estava apavorada. Quis saber, pelo amor de Deus, por que estavam todos sem roupas, como foi que chegaram àquele ponto, como é que uma coisa daquelas tinha acontecido, por que ele, que se dizia seu amigo, tinha permitido uma situação tão ultrajante e se algum dos meninos tinha transado com ela.

Ele contou que todos ficaram muito empolgados, de repente. As outras meninas saíram mais cedo, queriam dançar, levaram dois boys a tiracolo. De tal sorte que só restaram Susan e mais três no apartamento. “A chapa esquentou”, foi dessa forma jocosa que ele definiu a situação. Estavam todos endoidecidos por causa do Cuspe e das baganas com raspas de terebintina. “Começou a rolar um lance meio doido”, explicava. Ela perguntou, de novo, ansiosa e aflita, se algum dos meninos tinha feito sexo com ela, já que não estava se sentindo nada bem. Ele sorriu. “Ninguém era de ninguém, irmãzinha”. Na verdade, todos acabaram se atracando. À certa altura da festa — ele conta — estavam os quatro literalmente acoplados pelas genitálias, revezando bocas, orifícios e falanges; encaixando as engrenagens corporais como se formassem uma pantagruélica máquina de carne-e-osso, muito bem azeitada, se é que ela entendia. Ela não estava entendendo nada. “Logo em seguida, você desmaiou”.

No auge do relatório, Susan entornou a xícara de café sobre a mesa. Uma garçonete acudiu com presteza. Acendeu, finalmente, o seu Jeronimo’s. Estávamos perplexos, sentados numa mesa que ficava do lado de fora da cafeteria, sobre a calçada. Os pombos xeretavam por migalhas. Eu só queira um porrete. Ninguém mais se importava com a fumaça. Susan pensava em procurar uma delegacia para denunciar os meninos por estupro coletivo. Não sabia ao certo o que fazer. Queria a opinião de um cara mais velho, como eu, um homem maduro, supostamente confiável. Estávamos todos perdidos, isso sim. Ela confidenciou que ainda sangrava pelo rabo. Temia gravidez, micróbios e a volta às aulas. Queria evaporar. Tinha um jeito?

Pedi a conta. Chamei um Uber. Telefonei para uma colega que era ginecologista. Seguimos para o consultório dela, digerindo todo aquele drama. Dentro do carro, ela se encolheu sobre o meu colo, uma beldade arruinada, com as madeixas crespas que cheiravam a xampu de alfazema, embebidas em lágrimas. O motorista tagarelava o seu quinhão de assuntos que não eram da minha conta. “Cala a boca que eu te dou cinco estrelas”. Perdi a compostura. Eu já não tinha ouvidos para mais nada. Eu só pensava. E, em pensando, ficava. Triste e calado, como uma cidade vazia, em meio a mais um apagão de humanidade.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.