Há algumas coisas no mundo que você não pode ficar sem conhecer quando visita determinados lugares. Dizem, por exemplo, que ir a Ribeirão Preto sem visitar o Restaurante Pinguim é o mesmo que ir a Roma sem ver o Papa. A mesma coisa se diz quanto a ir a Nova York sem ver a Estátua da Liberdade ou a Paris sem conhecer a Torre Eiffel ou o Museu do Louvre.
Igual a tudo isso é vir — ou estar — no Brasil sem tomar conhecimento de expressões linguísticas que só se vê por aqui, típicas do humor tupiniquim. É claro que outros povos também fazem brincadeiras com seus idiomas, mas a forma escrachada de cunhar alguns jargões, posso dizer sem muito conhecimento científico, é típico da maluquice brasileira.
Isso não é ruim, digo logo antes que a patrulha venha me apedrejar, mas revela um caráter específico do povo, que é o de carregar até mesmo nos símbolos da linguagem a leveza da alma, carcomida pelos males do cotidiano.
Algumas das expressões a seguir, conforme me alerta aqui o meu próprio editor de texto, já estão incorporadas até ao dicionário, mas não há como negar que suas origens estão fincadas no desbunde geral da nação — desbunde, aliás, que também está na lista.
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Olhômetro
Na construção civil, temos alguns instrumentos que auxiliam a aferir a precisão das medidas da obra, como a trena, o nível e o prumo. Mas não é raro que pedreiros, mestres e até engenheiros se valham dessa importante ferramenta para agilizar algumas atividades, quando a pressa fala mais alto do que a exatidão.
Falo do olhômetro, que nada mais é do que a ciência de presumir que determinada medida está de acordo com um padrão esperado. Imagine a construção de um muro: o sujeito olha a distância entre o ponto de início e o final e, sem trena ou fita métrica, diz, no olhômetro: são 14 metros. A partir daí é possível decidir, por exemplo, quantos tijolos devem ser adquiridos para a construção, o que, aliás, também é uma operação fácil de se desenrolar, sem calculadora ou papel e caneta, com outro importantíssimo instrumento, que é o calculômetro, também conhecido como “fazer conta de cabeça”.
Mas o olhômetro não empresta suas utilidades apenas no departamento da construção civil, ele é de grande valia também para decidir várias disputas sobre qualquer coisa relativa a quantidades e medidas. É, por exemplo, pelo olhômetro, que os casais de todo o país decidem o quanto de arroz e feijão devem por na panela, na proporção da quantidade de pessoas que vão almoçar em casa no dia. Aliás, se for preciso sobrar para o jantar (eu queria dizer janta, mas uma professora de português me disse que é um erro), o olhômetro deve ser ainda mais preciso na sua tarefa, sob pena de faltar — e aí alguém vai ficar com fome — ou sobrar, o que é um desastre, pois se não houver um cão para quem distribuir a sobra, algo de podre haverá no reino da cozinha.
E, enfim, o olhômetro é só o começo do desenvolvimento de toda uma tecnologia dos sentidos: podemos falar, por exemplo, que o ouvidômetro já é uma realidade, pois é por ouvir dizer que muitas vezes tomamos decisões importantes, como por exemplo: ouvi dizer que a vizinha compra 16 rolos de papel higiênico por mês e é suficiente.
Nem vou falar do narigômetro, pois esse tema já começa a me cheirar mal.
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Desconfiômetro
O maior símbolo do desconfiômetro é a vassoura atrás da porta. É um de seus botões de acionamento. Ligado o desconfiômetro, o sujeito passa a ter noção de que algo na sua conduta vai mal e deve tomar outro rumo.
Para muito além de indicar à pessoa que já passou da hora de ir embora da casa de alguém, o desconfiômetro tem sido, ao longo do tempo, uma importante ferramenta para refrear ânimos indesejosos. Quem não se lembra, por exemplo, de candidatos em debates que só param de falar após o estouro do tempo quando o mediador lhe chama a atenção ou corta o microfone? Alguns, aliás, não ligam o desconfiômetro nem depois disso, e podemos ouvir a sua voz vazada pelo microfone do mediador.
Isso revela, aliás, o grande problema do desconfiômetro: ele não é um instrumento democrático, pois nem todo mundo possui um. Vamos lá, lembrem-se aí daquele parente ou amigo que vocês conhecem que não tem — ou se tem, nunca liga — o desconfiômetro.
Mas é importante lembrar: se você não tem um desconfiômetro, nem tudo está perdido. Você pode encontrar um, gratuito, em qualquer loja da consciência (Freud chamaria de superego) ou em feiras e cursos comportamentais. Não perca a oportunidade, nunca é tarde para desconfiar.
3
Desbundar
O desbunde é uma tradição nacional. Quando ninguém mais entende porque fulano está agindo de determinada maneira, completamente fora de um padrão aceitável, diz-se que ele desbundou.
Há quem restrinja o desbunde apenas às situações em que o sujeito se entope de álcool, após o que passa a agir como se nada mais à sua volta importasse. É o desbunde alcoólico, muitas vezes sucedido de um coma alcoólico. Melhor não testar em casa, muito menos fora dela.
Mas o ato de desbundar vai muito além dos estreitos limites etílicos. Geralmente, no carnaval, há uma licença implícita para o desbunde, que inclui, muitas vezes, desbundar sozinho ou desbundar em favor (ou em desfavor) de outra pessoa. Se bem me entendem, nos carnavais mais recentes, a campanha do “não é não” parece ser um prenúncio de que o desbunde carnavalesco pode estar com os seus dias contados.
E, é claro, há o desbunde político, do qual o país padece há décadas, mas é melhor deixar o assunto quieto, pois, a depender do ponto de referência — considerados os acontecimentos recentes envolvendo cédulas de dinheiro ilícito — pode estar bem ao contrário, ou seja, está se transformando em um bunde; se é que é possível bundar depois do desbunde.
Há registros de que o desbunde também significa deslumbramento, então desbundar também seria deslumbrar-se com algo ou, até mesmo, estar deslumbrante. Mas quem acredita nisso é só quem já desbundou da consciência e da autocrítica.
4
Nas coxas, na tora e com a barriga
Brasileiro adora assumir a responsabilidade por alguma tarefa. Muitas vezes sem qualquer pedido, nos voluntariamos para fazer algo que não nos pediram. Daí, muito provavelmente, surgiu a expressão “nas coxas”, pois, quando nos comprometemos com tarefas demais, acabamos desempenhando as principais (pelo menos as que achamos que são mais importantes) com as mãos. Como não sobram outras mãos, as demais fazemos nas coxas.
Veja bem, muito embora possa ser difícil identificar as diferenças entre fazer algo nas coxas e empurrar com a barriga, há sim uma distinção, e ela é importante. Fazer nas coxas é fazer mal feito, de qualquer jeito. Empurrar com a barriga denota apenas um atraso no cumprimento da tarefa, mas não significa que, ao final, ela será mal desempenhada.
É lógico que as duas situações podem acontecer em conjunto, caso em que o sujeito, além de ter empurrado a tarefa com a barriga, ainda a fez “nas coxas”, quando, finalmente, se desincumbiu dela. Se for um sujeito desbundado, então, já teremos três partes do corpo humano referidas nas ações de um único sujeito.
Finalmente, mas não menos importante do que as demais, temos a brasileiríssima qualidade de fazer as coisas “na tora”. Muito embora possa ser tomada como expressão sinônima de “nas coxas”, o fazer na tora pode também significar que algo foi feito de maneira forçada, ou seja, rompendo algum limite que não era transponível para o ato.
Então, quando se diz, por exemplo, que “o Fulano fez o trabalho na tora”, é preciso muito cuidado para compreender o que se quer dizer: pode ser que ele tenha feito o trabalho de qualquer jeito, sem muita qualidade, ou pode ser que forçou a barra para fazer, como quando plagiou de algum livro ou colega (se for trabalho de faculdade) ou quando, mesmo sem ter nenhuma noção do que está fazendo, assim mesmo o faz, independentemente do resultado bom ou ruim.
Recomenda-se que, para bem compreender qual dos significados do “na tora” o interlocutor quer empreender, deve-se observar as suas expressões faciais e o gestual: se retorce os lábios e balança uma das mãos, significa que foi mal feito; quando cerra os dentes e um dos punhos, quer dizer que foi feito à força.
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Achismo
Este é um clássico comportamental brasileiro: achar — ou, pior, muitas vezes, ter certeza — de que sabe algo sobre determinado assunto, mesmo sem ter o mínimo conhecimento de causa a respeito do tema.
O achismo tem sido, ao longo de décadas, um substituto eficaz para a ciência: o detentor dos achados intelectivos não titubeia em dizer: vai por mim, é batata! E, quando sua batata assa por ter acreditado no achista, ele diz: não é bem isso que eu disse…, mas você também se esqueceu daquilo outro etc.
Mas devemos ser justos: o achismo pode ser consciente ou inconsciente: o achista, muitas vezes, sabe que seus enunciados são baseados em tudo que há no universo, exceto na ciência, mas ainda assim os proclama, sem qualquer vergonha na cara. Muitas vezes sabe até que vão contra as evidências científicas, mas geralmente a sabedoria da sua avó ou do primo do vizinho do açougueiro da cidade em que seu pai passou a infância falam muito mais alto. Ponto para ele, no entanto, quando confessa: estou dizendo com base no achismo.
E há o achista inconsciente, que é aquele que toma conhecimento de algum postulado e o transmite sem verificar-lhe a veracidade, muitas vezes por ingenuidade, outras por interesse. Esse é muito perigoso, porque, quando a vaca vai para o brejo, geralmente ele não tem culpa alguma, afinal de contas, ele “não sabia que estava errado o que ouvira dizer”.
Bom, acho que é isso… ou não.
6
Cangar o grilo ou amassar o barro
O verbo cangar significa colocar uma canga em algo. A canga, por sua vez, é uma peça que serve para reter um ou mais animais em conjunto, como ocorre em carroças ou carros de bois. Também significa uma peça de roupa de praia, mas acho muito pouco provável que alguém queira experimentar uma canga num grilo, mesmo que em sentido figurado.
Cangar o grilo, portanto, tem o sentido de enrolar, inzonar, ou, mais ou menos — ser como era o Zinho (nosso glorioso meia-esquerda na Copa de 1994) — ou seja, comportar-se como uma enceradeira, que sempre dá voltas em torno do mesmo ponto.
Na mesma linha temos a cultura de amassar o barro: para muito além de significar uma compactação de solo ou uma bela terraplanagem, o amassamento de barro corre na mesma estrada da cangação de grilo, pois, enquanto se amassa o barro, seria possível fazer algo mais, como plantar batatas ou carregar um caminhão de lenha.
Mas nós gostamos mesmo é de amassar o barro, muito mais do que é necessário. E o barro, já durinho, compactado, fica lá, sem o próximo passo da tarefa. E quando alguém vem reclamar, nós simplesmente mandamos o sujeito ir plantar batata ou procurar um caminhão de lenha para carregar.
7
Quarta-feira
Cá pra nós: essa é a melhor expressão de todas. O Quarta-feira é aquele sujeito medíocre, tonto, que todo mundo passa pra trás. Quer um dia melhor do que a quarta-feira para simbolizá-lo?
Veja bem, o que é que significa a quarta-feira: nada! Ah, mas é o meio da semana… Exatamente, não é o começo, em que estamos animados para trabalhar, nem o final de semana, quando desbundamos geral após os dias de trabalho.
E quando um feriado cai na quarta-feira? Serve pra quê? Não há desculpa para emendar, porque está no meio da semana, e ainda serve apenas para atrapalhar as tarefas que vêm sendo desempenhadas na segunda e na terça, aquelas que você não consegue terminar no prazo de uma semana porque precisava de cinco dias para concluir, mas aí vem o feriado na quarta-feira para interromper o trabalho e jogar o resto para a outra semana.
Mas é importante anotar: o Quarta-feira não tem qualquer problema cognitivo que o impeça de bem compreender as coisas e de ser considerado esperto. O Quarta-feira é o símbolo da quarta-feira, aliás esse deve ser o dia preferido dele, já que ele nem percebe a sua inutilidade. Vou dar um exemplo:
Um Quarta-feira certa vez recebeu um telefonema de uma editora. O sujeito perguntou: o senhor está recebendo corretamente a revista que o senhor assinou? O Quarta-feira, esperto, disse: não assino nenhuma revista dessa editora, meu amigo. O sujeito diz então: Perdoe-me, senhor, deve haver algum engano então. O senhor poderia estar passando seus dados para cancelarmos o pedido e o senhor não estar tendo nenhuma dor de cabeça depois? O Quarta-feira responde: Claro, anote aí.
E agora ele está de segunda a sexta-feira correndo atrás de advogados para limpar o nome.
8
Cagar e andar
Como terminamos o último tópico com limpeza, agora vamos sujar. Se fosse para guardar a elegância do vernáculo, a expressão correta seria “defecar e deambular”, mas como a intenção aqui é escrachar geral, é muito melhor o bom e velho cagar e andar.
Quando um sujeito está cagando e andando, se não me engano, ele quer dizer que está se comportando como um pato, ou seja, um animal que não está muito preocupado com as sujeiras que deixa para trás. Nem para frente.
É aí que o “cagar e andar” me preocupa.
Claro que há situações em que sempre é bom e legítimo cagar e andar, como naquelas em que, por exemplo, a patota do politicamente correto te aporrinha porque você se esqueceu de castigar a língua portuguesa e disse “amigos”, ao invés de “amigxs” ou “amigues”.
Mas o brasileiro às vezes exagera na dose de cagação e andança. Há casos em que, podendo (e devendo) impedir que alguém faça algo errado — tanto agindo contra o errado ou mesmo entregando o delinquente à autoridade —, o sujeito simplesmente rumina: “ah, não tá me prejudicando, tô cagando e andando”.
E aí, quando já é tarde demais para evitar o drama (perdão, Chico, não resisti), todo mundo se dá conta da cagada que foi feita, e às vezes não dá mais para andar pra lado nenhum, porque o resultado da “obra” já está espalhado no ambiente, e nem foi preciso jogá-lo no ventilador.
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Manjar dos paranauê
Quando um cara manja dos paranauê, não é qualquer pessoa que pode lhe fazer frente. Manjar dos paranauê talvez seja o topo da cadeia alimentar da sabedoria popular não-científica. Pode até ser que quem manja dos paranauê seja inteiramente embasado em ciência e sapiência, mas o que importa é o status de manjador dos paranauê que ele conquistou ao longo do tempo. Não se discute com ele e suas manjações.
Outra coisa elementar é o fato de que o paranauê manjado pelo manjador não é necessariamente um fato que demande estudo, mas pode ser algo em que se passa a ser expert pela pura experiência do sujeito. Um mecânico antigo e conhecido na sua área, por exemplo, geralmente manja de todos os paranauês relativos ao tipo de automóvel com que costuma trabalhar e suas opiniões raramente são desprezadas em favor das de qualquer engenheiro mecânico que se arvore em dar uma de espertinho. Na construção civil, também, o mestre de obras costuma manjar muito mais dos paranauês construtivos do que o engenheiro responsável técnico pela empreitada.
Observe que o paranauê foi utilizado, logo acima, por vezes no singular e outras no plural. É uma regra difícil de compreender, mas basta ter em mente que, sempre que estivermos utilizando a expressão “manjar dos paranauê”, o paranauê será sempre grafado e falado no singular, não importando a concordância nominal com o restante da frase. Sabendo disso, basta, a seguir, observar se o paranauê é seguido de algum adjetivo, como nos casos acima: “relativos” e “construtivos”; como os adjetivos estão no plural, o paranauê também se pluraliza.
Manjou?
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Chutar o balde ou chutar o pau da barraca
Eu não finalizar essa lista sem chutar o balde. Sim, leitor, fique à vontade para chutar o balde também, porque, se você veio até aqui, sentirá que acabou de encher o balde com um monte de cultura inútil.
Mas, para não ficar só nessa vibe de autocrítica sem sentido, vou explicar o que é chutar o balde: significa apelar, surtar, revoltar-se com alguma coisa de tal maneira que todos à sua volta percebam a sua indignação. Aí, para simbolizar a revolta, o sujeito não apenas a verbaliza, mas comete algum ato físico que destrói algo importante que ele mesmo — ou outras pessoas — fez ou fizeram.
Daí a alegoria com o “balde cheio de leite” que o vaqueiro acabou de ordenhar, mas que, por estar injuriado, acaba chutando e destruindo todo o trabalho que ele, o banquinho de sentar e a pobre vaquinha tiveram até aquele momento do estouro de estopim.
Contudo, há uma situação de “nervos à flor da pele” que é extrema, ou seja, que ultrapassa todos os limites do que o sujeito possa tolerar. Nesses casos, o sujeito não chuta o balde simplesmente, pois é uma ocasião em que ele não quer que as pessoas chorem apenas pelo leite derramado. Ele quer destruir um trabalho hercúleo que foi feito antes. É aí que o sujeito chuta o pau da barraca.