Guimarães Rosa e o maior julgamento literário da história do sertão

Guimarães Rosa e o maior julgamento literário da história do sertão

No romance “Grande Sertão: Veredas” (Companhia das Letras, 552 páginas), de João Guimarães Rosa, há pelo menos sete grandes personagens: a Linguagem, o Sertão, Riobaldo Tatarana (o tradutor do Sertão e pactário com o Diabo), Diadorim (o duplo), Joca Ramiro (o homem fantasmal, o mito), Hermógenes (pactário com o Diabo) e Zé Bebelo. Deus e o Demônio são coadjuvantes. Um dos trechos mais admiráveis é o julgamento de Zé Bebelo, então bate-pau do governo, pelos jagunços.

O valente e palavroso Zé Bebelo pede para ser julgado e Joca Ramiro, chefão da jagunçama, aceita e convoca os “jurados” Sô Candelário, Hermógenes (pactário com o demo), Ricardão, Titão Passos e João Goanhá. “Reunidos no meio do eirado, numa confa”, o grupo começa o julgamento. “Zé Bebelo não estava aperreado. Tomou corpo, num alteamento — feito quando o perú [Guimarães Rosa prefere com acento] estufa e estoura — e caminhou em direitura.”

Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas (Companhia das Letras, 552 páginas), de João Guimarães Rosa

“‘Lhe aviso: o senhor [Zé Bebelo] pode ser fuzilado, duma vez. Perdeu a guerra, está prisioneiro nosso…’ — Joca Ramiro fraseou.” Zé Bebelo repostou: “Se era para isso, então, para que tanto requifife?” Sem perder a paciência, Joca Ramiro insistiu: “O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei”. Zé Bebelo manteve a verve: “Velho é, o que já está de si desencaminhado. O velho valeu enquanto foi novo”.

Joca Ramiro não se deu por vencido: “O senhor não é do sertão. Não é da terra”. Zé Bebelo atacou com mais prosa: “Sou do fogo? Sou do ar? Da terra é a minhoca — que galinha come e cata: esgaravata!”

Como a conversa não atava nem desatava, Joca Ramiro começou o julgamento. Hermógenes não mediu palavras: “Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar este cujo, feito porco. O sangrante… Ou então botar atravessado no chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele — a ver se vida sobrava, para não sobrar! (…) Cachorro que é, bom para a faca. (…) Dele é este Norte? Veio a pago do Governo. Mais cachorro que os soldados mesmos… Merece ter vida não. Acuso é isto, acusação de morte. Diacho, cão!”

Zé Bebelo defendeu-se: “Porque acusação tem de ser em sensatas palavras”. Hermógenes ficou uma fera: “Meu direito é acabar com ele, Chefe!” O tutúmumbuca Joca Ramiro discordou: “Mas ele não falou o nome-da-mãe”. O narrador, Riobaldo, acrescenta: “Só para o nome-da-mãe ou de ‘ladrão’ era que não havia remédio”.

Sô Candelário, homem bravo, disse que ele e Zé Bebelo deveriam resolver a pendenga a faca. Joca Ramiro não deixou: “Agora é a acusação das culpas. Que crimes o compadre indica neste homem?” Sô Candelário deu seu voto: “Crime?… Crime não vejo. (…) Veio guerrear, como nós também. Perdeu, pronto! A gente não é jagunços? A pois: jagunço com jagunço — aos peitos, papo. Isso é crime? Perdeu, está aí feito umbuzeiro que boi comeu por metade… Mas brigou valente, mereceu… (…) o que acho é que se deve de tornar a soltar este homem”.

Guimarães Rosa e os vaqueiros da tropa durante a travessia do sertão mineiro, em 1952

Ricardão, amigo e guru de Hermógenes, votou pela pena de morte: “… Zé Bebelo veio caçar a gente, no Norte sertão, com mandadeiro de políticos e do Governo, se diz até que a soldo… A que perdeu, perdeu, mas deu muita lida, prejuízos. (…) Dou a conta dos companheiros nossos que ele matou, que eles mataram. Isso se pode repor? E os que ficaram inutilizados feridos, tantos e tantos… (…) A gente não tem cadeia, tem outro despacho não, que dar a este; só um: é a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada”.

Defensor de Zé Bebelo, Riobaldo interrompe a história e pergunta: “Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. (…) Lei é lei? Loas! Quem julga, já morreu. Viver é muito perigoso, mesmo”.

Na vez de julgar, Titão Passos segue os passos de Sô Candelário: “Este homem não tem crime constável. (…) Ah, eu, não. Matar, não”. João Goanhá segue Titão Passos: “… meu voto é com o compadre Sô Candelário, e com meu amigo Titão Passos, cada com cada… Tem crime não. Matar não. Eh, dia!”.

Democrático, o chefão Joca Ramiro abre espaço para os jagunços falarem. Riobaldo fala: “… A ver. Mas, se a gente der condena de absolvido: soltar este homem Zé Bebelo, a mãzavias, punido só pela derrota que levou — então, eu acho, é fama grande. Fala de glória: que primeiro vencemos, e depois soltamos. (…) Melhor é se ele der a palavra de que vais-s’embora do Estado, para bem longe, em desde que não fique em terra daqui nem da Bahia…”.

Zé Bebelo aprovou: “Tenho uns parentes meus em Goiás… (…) A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro”. Joca Ramiro diz: “Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai?” Zé Bebelo: “A palavra e vou, Chefe. (…)… pelo quanto tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado [Minas Gerais], nem na Bahia? Por uns dois, três anos?” Joca Ramiro: “Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem”. Mais tarde, Hermógenes mata Joca Ramiro. Zé Bebelo volta ao sertão e comanda, entre outros, os jagunços Riobaldo e Diadorim.

Euler de França Belém

É jornalista e historiador.