Em 2007, o cineasta Joel Schumacher lançou o filme “Número 23”, estrelando Jim Carrey num suspense em que o personagem principal é obcecado pelo referido numeral, a partir da leitura de um romance que parte da premissa de que o 23 está na origem de vários pontos cruciais da vida (número de cromossomos legado por cada pai, leis da geometria etc).
Atenção: este não é um texto de elogio ou crítica ao filme: ele é ruim e a obsessão com o número 23 é uma bobagem, mas eu não resisti à tentação de recordar essa “pérola” hollywoodiana para trazer o ponto central dessa reflexão.
É que há um vídeo que circula na internet há um bom tempo, no qual um suposto expert em ares condicionados diz que, veja só, é inútil posicionar a temperatura do seu aparelho em uma temperatura abaixo de 23ºC. O rapaz afirma, com todas as letras, que, se você colocar o seu ar num grau abaixo desse, o aparelho vai apenas tentar chegar a ele, sem sucesso, e ainda vai gastar mais energia elétrica.
Questões como a potência da máquina e a dimensão do ambiente em que está instalado passam completamente ao largo da discussão. Manuais de instrução, escritos pelos fabricantes após anos de estudo e desenvolvimento, nos quais se ensina a usar o modo automático para alcance da temperatura desejada? Bobagem, o que vale é o que o tio do YouTube falou.
É claro que, forçando menos a máquina — leia-se: utilizando menos a sua potência — haverá economia de energia, mas, independentemente de comprovações técnicas e científicas, surgiu toda uma plêiade de usuários que estacionam seus ares no número 23, nem mais nem menos. Consequentemente, temos a seita do 23, que grita de forma radical: coloquem os ares no 23!! É crime usar abaixo do 23! Morte aos tarados do 22, 21 ou menos!
Isso, meus amigos, é o que se tem chamado de pós-verdade: uma fixação por acreditar em tudo que se recebe e deglute de forma fácil e sem esforços, sem ter que pesquisar ou constatar a veracidade. Se o tio do YouTube falou, e falou com eloquência, é verdade.
Há também a pós-verdade absorvida por preferências: é aquela em que o sujeito lê (ou melhor, assiste, porque hoje em dia todo mundo espera virar vídeo, porque tudo é muito grande pra ler) alguma coisa que agrada sua opinião pessoal e, a partir de então, independentemente de constatar a sua veracidade, acredita nela e espalha para todos da sua conexão social.
E ai daquele que ousar desmentir a verdade preferencial compartilhada! Se você apontar para algum link ou site que prove o tamanho da lorota, logo ouve: é petista! Site de esquerda… e por aí vai. Aliás, se uma determinada fonte de informação é de direita ou de esquerda, não interessa se ela apresenta provas cabais, é a preferência pessoal do interlocutor que define se o que ela diz é válido ou não.
A era da pós-verdade não admite o debate. Basta a cada cidadão ou cidadã que absorve algum conhecimento querer acreditar nele. Veja bem: “querer acreditar” não corresponde, necessariamente, a sempre “acreditar efetivamente”. Muitas vezes, o sujeito que exerce sua pós-verdade nem acredita muito nas besteiras que insiste em disseminar por aí, mas, como ele quer muito acreditar nelas, vai assim mesmo, sem muita credibilidade. Afinal, dizia Goebbels, uma mentira repetida mil vezes…
Mas esses tempos estranhos que vivemos em decorrência do avanço das tecnologias de comunicação foram muito além da pós-verdade. Há uma turma que, de forma muito sagaz, começou a perceber que cada verdade ou pós-verdade tem um certo potencial de aceitação. A partir dessa percepção, passou-se a estudar o impacto que cada uma dessas insanidades pós-modernas é capaz de causar na opinião pública.
De consequência, não interessa mais a verdade, mas sim quais são a forma e o conteúdo capazes de melhor agregar interesse e admiração ao emissor da mensagem. Assim, cada sujeito (seja na imprensa, de massa ou não, ou mesmo o mero usuário de redes sociais) — esperto o suficiente para perceber qual é (e como deve ser) a mensagem a ser passada — escolhe a dedo o que publicar, tanto no que se refere ao que vai dizer quanto a como dizer.
E devo advertir que essa forma de transmitir o pensamento também é passível de atender a nichos e preferências: o impacto negativo que alguma publicação pode causar num determinado conjunto de pessoas é positivo para a classe a quem quero agradar. Daí eu analiso meus interesses e prioridades e decido: vou publicar.
Assim é que, por exemplo, se manifestantes queimam igrejas no Chile, interessa muito mais a mim inferir se a causa política me agrada do que a barbárie traduzida pelo ato de tacar fogo em propriedade alheia. Se gosto da causa, me calo; se não gosto, exagero nas circunstâncias e consequências, e culpo até o Papa pelo vandalismo.
E, nessa teia de interesses e conveniências, ninguém se importa mais com a verdade: na prática, antes de qualquer publicação ou notícia, pesquisa-se o impacto que suas circunstâncias estão causando — ou que podem causar — para, depois, decidir-se o que e como publicar. É, portanto, uma pré-verdade, porque o meio de comunicação (ou o mero usuário de redes) constrói a notícia a partir da observação das suas possíveis consequências; e só depois a publica.
No meio dessa loucura cotidiana construída por opiniões, e não pelos fatos, ninguém parece querer enxergar, por exemplo, que o jogador de futebol brasileiro contratado por um time após condenação por violência sexual na Itália deve ter garantido, como todos aqueles que não estão em situação de cumprimento de pena, o direito ao trabalho.
E nem me refiro aqui a dar-lhe um “benefício da dúvida”, como disse um outro jogador — hoje comentarista. Não se trata de dúvida, mas da garantia constitucional da presunção de inocência, que o Supremo Tribunal Federal garantiu, vocês sabem muito bem por iniciativa de quem, até o trânsito em julgado da sentença. Por que, então, apoiar a presunção de inocência daqueles que gosto e, ao mesmo tempo, esquecer completamente dela quando a causa me desagrada ou pode compor uma narrativa que vai impactar negativamente a imagem de quem publica os fatos como eles realmente são?
E os fatos são esses: o sujeito está condenado em primeira instância. Há um recurso em andamento. Se — e somente “se”, repare bem — cometeu realmente o crime de que é acusado (e isso, lembre-se sempre, valerá, segundo a nossa Suprema Corte, somente após o trânsito em julgado), deve pagar por ele com o rigor que a lei italiana lhe impõe, perdendo, com isso, os direitos políticos e parte dos direitos civis, inclusive o de trabalhar livremente.
Antes disso — e essa é a narrativa que causa impacto negativo — não há nada ilícito ou imoral em um time de futebol contratá-lo. É claro que as marcas e empresas vinculadas ao time têm todo o direito de querer se desvencilhar dessa imagem, publicamente arranhada pela gravidade do crime de que é acusado o cidadão; a minha birra mora no silêncio seletivo, na insistência em omitir a real situação processual do sujeito em favor da (justa) causa defendida.
E assim vamos criando nossas pré-verdades, a partir de opiniões e conveniências de ocasião. Depois, já lançadas as publicações de acordo com a análise de seus impactos, seus receptores vão captá-las, interpretá-las e compartilhá-las segundo suas preferências, independentemente dos fatos, das reais circunstâncias e de tudo que é importante para a precisão da informação.
Repare, todavia, que passa longe da minha intenção partir numa cruzada contra a disseminação de opiniões. Entendo que todo mundo tem o (sagrado) direito de dizer publicamente tudo o que pensa, inclusive quando são rematadas besteiras. O problema é a incapacidade adquirida de analisar de forma crítica as informações que são recebidas, pela mera vontade — ou vaidade — de que sejam verdades. E nem falo da ignorância, porque o lamentável mesmo é quando o sujeito tem o conhecimento e as ferramentas para verificar a precisão das publicações a que tem acesso, mas, solenemente, os ignora.
E há um outro grave perigo em tomar opiniões como verdades, que é o seguinte: quem emite essas opiniões? Quem é o dono da verdade? Muito ao contrário do que possamos acreditar, por mais que adoremos quem dita suas profecias como heróis da sociedade, muitas vezes a eleição desses “seres perfeitos” deságuam em tiros pela culatra. Montesquieu lembra que, na República Romana, foram escolhidos dez “iluminados” para exercer todo o poder de legislar, administrar e julgar. Eram homens admirados por seus conhecimentos e magnanimidade, como Ápio Claudio, que havia administrado a cidade com grande satisfação do povo, angariando considerável popularidade. Não obstante, Ápio não hesitou em usar seus poderes de decênviro para tentar tomar para si, contra a vontade da moça, a pobre Virgínia, por quem estava enamorado. Morta pelo próprio pai para evitar a consumação da violência, a história de Virgínia simboliza o período de tirania e sanguinolência representado pelo governo dos “dez iluminados de Roma”.
E termino por aqui, no vigésimo segundo parágrafo, antes que o caro leitor perceba que a soma dos caracteres das expressões “pré-verdade e pós-verdade” resulte exatamente no número 23. Este é um fato, e não uma opinião. Uma verdade, portanto, nem construída (pré-verdade), muito menos admitida sem verificação (pós-verdade).