Afirmar que Pedro Almodóvar é um dos mais talentosos diretores de sua geração é um clichê retumbante. Mas, o que não é lugar comum é perceber sua capacidade exímia de entender o feminino. A heroína almodovariana é toda e qualquer mulher. O espanhol, consegue, com perfeição criativa, do núcleo de sua ideia colossal, expor os tipos simples e edificá-los, desde a base ruída de suas vidas, desconstruídas por desgraças pessoais, a níveis diferenciados de auto redenção e retomada triunfante, como é o caso de “Volver”, “Tudo Sobre Minha Mãe”, “Fale com e Ela” e “A Pele que Habito”.
Para esse genial diretor, o sexo feminino é a quintessência da criação. Em sua cabeça, a costela de Adão não existe e Eva surgiu absolutamente pronta do âmago do ser primordial. Para ele a mulher é dotada de uma força excepcional. Suas heroínas enfrentam o pior de tudo. São sobreviventes, amantes incompreendidas, lutadoras irascíveis, seres essencialmente decididos e com uma força de vontade incomensurável. A mulher, em Almodóvar, tem o controle do mundo, precisa apenas descobrir como conduzi-lo. Veja como é a personagem de Penélope Cruz em “Volver”. Lembra de como ela deixa limpa a lápide de seu querido ente? Junto das outras tantas mulheres, que nessa antagônica submissão póstuma é, por mais contraditório que pareça, uma ação decidida e eficaz, ela dá o seu melhor. Tudo isso devido à sua ligação com a tradição que auxilia na edificação de sua fortaleza pessoal. “Volver” é um Almodóvar inequívoco. Sem dúvida, por causa da presença de uma heroína profundamente almodovariana. Raimunda, a personagem, é shakespeariana também! Ele quer assim. A tragédia persegue a mulher forte que, após assassinar o marido, segue sem deixar-se tomar pela culpa. E, implicitamente, pergunta: “Este é ou não é o ser mais poderoso que existe?” Nessa narrativa, a presença do masculino é irrelevante. As dores, as contradições, as obrigações e as pesadas imposturas sociais, recaem sobre o universo feminino. Essas Amazonas executam seu mundo com a dignidade que lhes é permitida e vencem.
Em “A Pele que Habito”, Almodóvar investiga o mito do Monstro de Frankenstein enquanto, paralelamente, intensifica a evolução de um ser inferior (homem) para uma criatura divina e bem elaborada (mulher). A redescoberta da pedra filosofal, que transmuta chumbo em ouro, ou da construção da pedra cúbica a partir da pedra bruta, para o diretor, consiste na lapidação do imperfeito, aparando as arestas grosseiras e modelando o resultado com dedicação e esmero, que é a transformação planejada, gradativa e intensa de um homem em uma mulher. O laboratório de Almodóvar é o Cinema. Nele, elementos lúdicos e verossímeis, de um ambiente de ciência experimental, são postos à maneira tradicional e certa, como devem ser os laboratórios da vida real, e se prestam à finalidade mesma daquele construído pelo dr. Frankenstein, com uma diferença: seu médico experimentalista não quer dotar a matéria inerte de vida, mas transmutar a coisa que já existe, desde seu estado bruto, fundamental, em algo melhor e mais belo.
“A Pele que Habito”, conta a história do cirurgião plástico Roberto Ledgard, que perdeu a esposa depois dela ter sofrido um acidente de carro, ficar com o corpo inteiramente queimado e cometer suicídio por não aceitar sua condição deplorável. Roberto tem que cuidar da filha, que sofre de transtornos mentais devido ao trauma da perda da mãe. O médico é meticuloso e calculista até quando ampara uma gota de azeite, socorrendo-a de acidentar-se no chão, para levá-la a boca num ato de misericórdia pensada. Essa personagem, constrói em torno de si o ambiente macabro e, a princípio, incompreensível, que comporta as figuras curiosas e estranhas as quais remontam aos clássicos do horror universal e às histórias de suspense que exploram o desabrochar do novo, que eclode das ruínas ou das sujeiras abjetas do mundo.
Falando de comportamento abjeto, a faísca que aproxima o comportamento de Roberto do médico Frankenstein, de Mary Shelley, é, justamente, um estupro. Ação do homem, o ser masculino e absurdo para Almodóvar, que, por causa da equivocada interpretação de sua natureza, acha que ser animalesco e brutal atesta sua condição primitiva, e distorcida, de supremacia natural, coloca o médico numa cruzada em busca de redenção para a filha maculada e para si mesmo e seu passado.
Frankenstein cria o monstro na forja de Vulcano para si. É claro, criador e criatura são um só. O feitor cria para contemplar-se na criatura. A redenção de seus atos obscuros está na perfeição de seu feito. O processo de elaboração do produto de sua obsessão, desenvolvido no conforto de seu laboratório abonado de todos os aparatos necessários para montar o objeto de seu desejo, é também um caminho para a cura. Em “A Pele que Habito”, todos esses elementos fantásticos ressoam em perfeita harmonia. O cientista decidido e compenetrado que, absorvido pela sua pesquisa, cria algo extraordinário e inovador, e submerge conscientemente num abismo sem retorno, até que no êxtase da vitória, quando sua criatura pode ser encarada como algo palpável e pronto, vê-se completamente envolvido pela extraordinária completeza de seu feito.
A criatura que nasce, da intensa dedicação de Roberto, é o oposto, na forma, do monstro e Frankenstein. Almodóvar se inspira no processo, mas parte para um caminho seu e a pedra bruta que lapidou, é perfeitamente cúbica. Prefere que o modelo de sua ideia seja mais esotérico do que literário, no sentido fantástico. A sua cria, trilhou o caminho da redenção, mesmo tendo nascido de uma fonte defeituosa e problemática. Almodóvar transmuta chumbo em ouro e define uma alquimia cinematográfica em amplos sentidos. O ditado diz que a melhor Literatura é aquela que se critica. Podemos ampliar! A melhor Literatura é aquela que se supera. Vale também para o cinema. O grande cineasta se reinventa e galga um nível superior para sua arte. O artista só se supera quando tem em sua história algo bom para apresentar. É o caso de Almodóvar e o seu “A Pele que Habito”.
Falemos um pouco da pele e da ciência explorada no filme. A todo instante, elementos relacionados à reconstrução estão espalhados pelo longa, de maneira óbvia, direta. Vera (Elena Anaya) pede, “Preciso de agulha, linha e tesoura”. São instrumentos fundamentais para a mudança cirúrgica desejada para os seus modelos, que simulam correção e que a personagem explora em sua condição particular. É prisioneira. Nesta altura ainda não sabemos o motivo, mas somos abalados pela beleza aterradora que ela possui e, também, perturbadora, por conta de uma simetria e perfeição peculiares. Nada humano, pode ser tão perfeito e simétrico. Há algo escondido. A ciência que move o médico e que ele apresenta em sua palestra, tentando esclarecer para o público um método de cirurgia plástica, já está consolidada, apesar dos avisos proibitivos e do mal que seu conhecimento aplicado pode causar. Todo o efeito é oriundo de uma fórmula criticada, por se tratar de uma discordância entre pensadores. A manipulação genética que Roberto defende é tão nociva quanto a manipulação de cadáveres que o doutor Frankenstein utiliza para fazer vida em seus experimentos. Os dois casos causam repulsa. O médico cria a GAL, e a sigla funciona como um código que nos transporta para o futuro. A pele é o invólucro. O ser que surge das experiências de Roberto, não pode ser maculado, como sua esposa foi. Roberto luta contra a fragilidade do corpo, combate os rompantes de Vera, “poderia respirar mais suave”, ele diz, refazendo sua cria à originalidade de seu esmero estético e certificando-se que seu trabalho não seja manchado pela incapacidade de uma mente simples não interpretá-lo do jeito certo. Porém, Vera, uma perfeição, nua, pelo olhar da correção, não excita instantaneamente — é uma passagem com algo onírico, sublime, Lo Duca culparia as cores. É preciso talento para enxergá-la com desejo. É um ser muito superior e correto, com muitas facetas. Insatisfeita, ela responde “Se quiser que eu pare de respirar, me mate”. Ainda tem dúvidas de que é melhor que a maioria e superior ao próprio criador, mas percebe que tem algo especial. O ser confuso e perturbado, simples e frágil do passado, vai deixar de existir. A compreensão de sua alta superioridade também precisa ser explorada, experimentada e adquirida gradativamente. Mais importante, precisa ser conquistada.
Depois de prontas, suas criações apresentam características que destoam daquelas desejadas pelos homens de ciência e manipuladores, que manipulam, de maneira íntima, o produto de sua conquista, pois os seres gerados, são dotados de consciência, em especial, da sua própria condição. Por não se desligaram de seu passado, seus comportamentos são essencialmente determinados pelo que eram. Mas exploram a potência de sua nova condição, pois são seres capazes de feitos incríveis. O monstro de Frankenstein é uma criatura horrível, repulsiva. Esse dilema, tratado por Mary Shelley, fala de um ser que é criado para ser humano, mas quando se olha no espelho vê que sua deformidade o impede de ser incluído, ele não é igual aos outros, ou não é mais. Assim, o monstro tem que procurar o responsável pela sua desventura, o seu criador. Em Almodóvar, percebemos o mesmo sentimento. Sua personagem, é outro ser! Precisa que seu criador perceba sua angústia, sua insatisfação, enquanto não entende que o superou. O próximo passo é eliminá-lo.
E mais, Almodóvar também trata ridiculamente o homem como um animal passional, enjoado, limitado e totalmente sensorial, quando usa o filho da governanta, realizada majestosamente pela formidável Marisa Paredes, para representar o sexo masculino, transvestido em um felino afetado e ridículo. Única coisa que destoa no filme, se distancia da harmonia condensada e bem dirigida por Almodóvar, mas é de propósito. Para o diretor, o masculino desarmoniza. Apenas o médico, o dr. Frankenstein, o Roberto de Antonio Banderas, tem seu lugar cativo, pois é parte definitiva no processo de transformação. Funciona como uma espécie de ferramenta divina no processo de elevação do indivíduo frágil escolhido para dar vida ao novo ser, a criatura melhorada, a nova mulher. Uma vez conseguido o objetivo, o médico é descartado.
O dilúvio almodovariano, que enche a tela de conceitos, não deixa de ser shakesperiano. Tem também sua porção de tragédia grega e elementos da formatação de super-heróis. Sua menina superpoderosa é forjada num caldeirão profundo onde estão adicionados ingredientes fundamentais para executar uma fórmula inusitada. Dali emerge um ser único. Vera/Vicente, um duplo magnífico concebido da convicção de uma mente formidável. Almodóvar coloca em prática a coisa mais poderosa do universo: a ideia.
Para essa heroína surgir, uma tragédia teve que acontecer. Não esperamos que Vera se torne uma justiceira imbatível, com sua pele indestrutível e seu histórico de matadora de malfeitores. Precisamos vê-la como alguém que necessita se inserir. Usando sua indumentária, o vestido que no passado sugeriu uma mudança e que, de certa forma, a coloca numa situação de conforto. O vestido é o elo com seu passado, a peça que a conecta com seu lugar no mundo. Ele se encaixa perfeitamente em seu novo corpo, esguio e simétrico. É, agora, sua armadura de heroína.