Histórias de pronto-socorro dariam ótimos livros de ficção. Ou não. É cada coisa que acontece. É cada caso que se conta. Num primeiro momento, no âmago da dor e do medo, alguns acontecimentos clínicos são dramáticos, gerando sofrimento aos pacientes e considerável pressão psicológica aos médicos e paramédicos assistentes. Depois de solucionados, os eventos que não geram risco de morte acabam virando lenda, piada ou história boa de se ouvir num convescote entre amigos. Foi o que aconteceu.
Chope destrava a língua. Fui até um boteco entornar canecos com um amigo, um médico socorrista que trabalhava num caótico hospital público destinado a atender urgências. Entre tosses contidas e gargalhadas sufocantes, expelindo perdigotos raivosos e causos hilariantes, comentamos o recente episódio do Senador da República que fora pego pela Polícia Federal com as calças nas mãos e um maço de dinheiro enfiado entre as nádegas, num dos episódios mais bizarros, deploráveis e patéticos que se tem notícia na extensa e indecente história da política brasileira.
Enquanto chupava asinhas-de-frango com molho agridoce, o ácido doutor contava-me acontecimentos igualmente escatológicos que vivenciara durante as lidas no pronto-socorro municipal. Aquele tipo de coisa que só o ser humano consegue propiciar e que acontece, muito de vez em quando, quase sempre no meio da noite, desconcertando, pegando desprevenida a equipe. Certa vez, ele foi chamado para acudir um moribundo que se encontrava encafifado na sala de triagem. O homem contava uns 50 e poucos, estava lúcido, calmo e aparentava não sentir dor alguma.
Pediu para conversarem a sós. Cansada de lero-lero, a enfermeira vazou para aplicar injeções nas testas. Tão constrangido quanto um goleiro quando busca a bola dentro do gol depois de tomar um frango, o paciente comentou que precisava criar coragem para contar uma coisa desagradável: tinha feito uma grande besteira. Morava sozinho, sofria de rompantes maníaco-depressivos e, num momento de crise emocional — aquilo nunca tinha lhe acontecido outras vezes, podia assegurar — ele tinha enfiado uma manga no ânus — “Sim, isso mesmo que o senhor ouviu, doutor, uma manga, ainda de vez” — e a fruta acabou se desprendendo da mão e se perdendo na sinuosa escuridão impalpável das tripas.
Não era a primeira vez que o cirurgião se deparava com casos esdrúxulos como aquele, de pessoas que engoliam objetos ou os enfiava pelos orifícios, afinal, lidava com gente e, gente, vocês sabem, é quase sempre esquisita. Tinha uma paciência de Jó. Esforçava-se para não julgar ninguém. Era um homem vocacionado para a medicina, não trabalhava naquele ofício só para ganhar dinheiro, comprar fazenda e enfartar aos 40. O rol de esquisitices do ser humano era bem variado. Já tinha atendido outros pacientes — homens e mulheres — empalados com objetos os mais variados: moedas, escova de cabelo, lâmpada elétrica, pilha de rádio, vela de 7 dias, garrafa de Coca-Cola, arame e até mesmo uma escultura triangular de uma santa, talhada em madeira, com os dizeres “Lembrança de Aparecida do Norte”.
Mesmo sendo um incrédulo, mesmo sendo um perdido, mesmo sendo uma ovelha desgarrada, pensei no que pensaria o Papa Francisco se nos ouvisse a conversar e achei aquele detalhe da santinha desnecessário, uma heresia de primeira linha. Fiquei com medo de gargalhar ao imaginar a cena e cair em desgraça pessoal. Provavelmente, já estivéssemos, os dois, embriagados demais, viajando na maionese, depois de mordiscar deliciosas asinhas-de-frango com molho agridoce. “A vida é por demais amarga, companheiro. É preciso mais sorriso no rosto”, ele teorizou, limpando a bocarra engordurada na manga da camisa de linho branco, provavelmente repleta de micróbios. Garantiu que os fatos eram reais, que não tinha inventado patavina nenhuma e que só não podia dar nomes aos bois por questões éticas, o juramento de Hipócrates e coisa e tal.
Formávamos uma dupla hipócrita. Receei que, gargalhando daquele jeito, sem modos, sem máscaras, quebrávamos os protocolos sanitários do bar — ainda eram tempos de pandemia viral —, além dos decoros profissional e eclesiástico. No final das contas, quase sufocando de tanto rir, concluí que o boteco era laico e mandei descer mais dois chopes-com-colarinho-alto. O Papa era um homem santo e nos entenderia. Tive a convicção de que nunca descêramos tão baixo em matéria de literatura e de happy hour.
Voltando ao intrigante caso da manga. O esculápio veterano explicou ao paciente como faria o procedimento endoscópico, que seria necessário requisitar o adjutório de um anestesista para aplicar nele uma sedação, a fim de que o esfíncter ficasse relaxado o suficiente — “Relaxe, não vai doer nada” — para que que ele, um esmerado explorador de cavernas humanas, pudesse, sem tremer as mãos, sem piscar os olhos, localizar, arpoar e extrair o fruto perdido das profundezas do organismo.
Sem grandes expectativas, o paciente sorriu, anuiu com a cabeça, prestou reverências ao SUS e declarou que concordava em gênero, número e grau com as providências explicitadas, pois, confiava muito na sua capacidade profissional. Entretanto, gostaria de fazer um último pedido, antes de adormecer sob a providencial injeção de boa-noite-cinderela na veia, caso ele, o médico, não se importasse — na verdade, pelo adiantado da hora, ele, o socorrista, se importava bastante, mas, tinha feito um juramento, então, era todo-ouvidos. O homem requisitou que o fruto não fosse jogado fora, pois, pretendia, levá-lo consigo, na manhã seguinte, tão logo recebesse alta hospitalar. Adorava chupar aquela espécie de manga porque não deixava fiapos entre os dentes.
Aquilo foi demais para mim. Esmurrei o tampo da mesa. Os canecos vazios entreolharam-se assustados. Os ossinhos da pobre ave, destroçada por nossos caninos brancos e vorazes, estremeceram. Eu disse que ele fosse mentir para outra pessoa. Lerdo, cínico, risonho e nem um pouco confiável àquela altura da noite, o doutor-amigo mandou renovar os canecos e garantiu que nunca mentia, senão, para a Receita Federal. “Algumas pessoas nunca saem da fase anal, meu amigo. Veja só o Senador da República. Nem Freud explica uma coisa como aquela…”. Então, levantou-se, firmou o corpo e caminhou cambaleante até o banheiro mais próximo.