Rei Lear (1605), considerada por muitos o ápice da dramaturgia shakespeariana, é uma peça monumental que levanta um espelho refletor para flagrar a ruptura de laços naturais entre pais e filhos (microcosmo) e as arbitrariedades do absolutismo monárquico que dominava a Europa à época (macrocosmo). No texto de Shakespeare, a própria monarquia, e não apenas o velho monarca, torna-se alvo de escrutínio, visto que que o dramaturgo nos mostra não somente o doloroso processo de amadurecimento de Lear como ser humano, mas também o redemoinho da transformação histórica na confluência de duas eras, e a impossibilidade de transição serena entre uma e outra. O enredo da peça reflete as inquietações do tempo em que Shakespeare viveu e escreveu, as quais são semelhantes aos conflitos vivenciados nos dias de hoje. David Hare, um dos maiores dramaturgos vivos da Grã-Bretanha, asseverou que as falas das personagens em Rei Lear poderiam ter sido escritas por Samuel Beckett: Shakespeare mostra o lado sombrio da condição humana e o sofrimento universal em que tudo geme e padece.
Uma nova tradução de Rei Lear (2020), do professor, poeta e tradutor Lawrence Flores Pereira, foi lançada recentemente em e-book e em versão impressa pela Companhia das Letras/Penguin para celebrar os dez anos de existência do selo editorial. Trata-se de uma tradução para o português que se diferencia em diversos aspectos das muitas já existentes, principalmente no que diz respeito à expressividade poética e às conexões mais profundas entre voz e texto, as quais exigem que o tradutor leve em conta a recriação das sutilezas verbais shakespearianas e as configurações de estímulos acústicos. O tradutor também verteu para o português as tragédias Hamlet (2016), vencedora do Prêmio Jabuti de Melhor Tradução em 2016, e Otelo (2017), publicadas pela mesma editora. A tradução oferece ao público leitor diversos paratextos, entre eles um erudito ensaio introdutório de crítica literária, escrito pelo tradutor e por Kathrin Holzermayr Rosenfield, o qual constitui o mais completo guia sobre o texto, os ur-textos e os intertextos de Rei Lear em relação ao contexto histórico-social e cultural. Alicerçado em críticos renomados e imbuído de reflexões aprofundadas, o ensaio discute e problematiza a dramaturgia de Shakespeare e mergulha fundo em algumas questões específicas de seminal importância para a compreensão e fruição da peça em questão.
Na sequência, completam o volume dois ricos estudos escritos pelo tradutor, além de inúmeras notas explicativas que acompanham a tradução, as quais iluminam significativamente o universo textual, proporcionando um sólido esteio para a leitura e compreensão do mesmo. Na seção “Notas sobre o texto” (p. 73-75), Lawrence informa que existem três variantes de Rei Lear publicadas no século 17, e que há uma variedade de versões conflacionadas que apresentam diferenças substanciais entre si. Além disso, esclarece que optou pela edição conflacionada da edição Arden, a qual funde o primeiro in-Quarto (Q1) e o primeiro Folio (F1), referindo-se, ainda, às vantagens propiciadas por essa opção.
Na seção “Notas sobre a tradução” (p.77-94), Lawrence analisa e discute as especificidades de seu processo tradutório que se definem “pela percepção dos contrastes formais, estilísticos e de registro característicos da escrita dramática de Shakespeare” (p. 78). Explica que optou pelo dodecassílabo (verso de 12 sílabas) para as partes em verso, não como mero tributário da tradição francesa, mas porque o alexandrino, agora com acentuação móvel, se adapta melhor às particularidades da língua portuguesa, prestando-se, assim, tanto às formas mais ritmadas como às formas conversacionais, reflexivas e disruptivas, um procedimento que permite respeitar os ocasionais experimentos de Shakespeare com acentuações variáveis no estrito padrão do pentâmetro iâmbico. Guardadas as devidas proporções, o verso alexandrino também possibilita manter a rica opulência imagética da linguagem shakespeariana, com menos supressões ou extrapolações, bem como restaurar o contraste entre verso e prosa e a polarização de registro no que diz respeito a diferentes falas e situações.
Explicando os procedimentos de sua prática tradutória, nesta seção Lawrence descreve seu próprio processo de tradução e a linguagem ali adotada. Assim como Shakespeare, que foi ator e escreveu para atores que devem enunciar o texto no palco para alcançar efeitos estéticos que propiciem a resposta emocional no espectador, o tradutor também mostra preocupação com a cena, pois acredita na importância da expressividade vocal do texto e da comunicação acústica que leva em consideração a vocalização das palavras pelo ator. Como o próprio tradutor relembra, sua tradução é feita em voz alta, com o intuito de simular uma situação de enunciação cênica. Nesse sentido, procura observar o ritmo, a coloratura, o timbre, as tonalidades, assonâncias e outros elementos marcantes que se assemelham a uma partitura musical.
O tradutor considera as especificidades apontadas acima como aspectos primordiais para recriar as sutilezas do verso shakespeariano. Muito do sentido na tradução da peça depende da habilidade do tradutor de respeitar a expressividade verbal do dramaturgo. Assim, ao tecer sutis nuanças de significação em sua tradução para o português, Lawrence consegue recriar a ambiência veiculada pela poesia encantatória e retórica de Shakespeare, propiciando um acúmulo de apelos sensoriais além dos cinco sentidos, capazes de conduzir o leitor/espectador a um envolvimento visceral e orgânico. Vale observar a tradução da fala de Lear, no início da segunda cena do terceiro ato, na qual, ao testemunhar a tremenda força da natureza durante a tempestade, o rei vem a compreender a sua insignificância e da humanidade. O trecho abaixo mostra que a fala foi traduzida com a atenção voltada para a ambiência ou Stimmung (Gumbrecht, 2014), ou seja, o tradutor procurou valorizar a materialidade do discurso, veiculado pela voz do ator que envolve nossos corpos enquanto realidade física. Nesse sentido, a mais recente tradução de Rei Lear investe as palavras de uma existência palpável e corpórea, com energias e dimensões diferenciadas:
LEAR: Sopra, vento, explode as faces. Bufa e bafeja!
Furacões e cascatas, jorrai até que tenham
Lavado os campanários e os galos nos pináculos!
Vós, fogos sulfúricos, prestos como a mente,
Arautos dos clarões que estraçalham carvalhos,
Queimai minhas cãs! E tu, túrbido trovão,
Desmantela da terra a compacta rotunda,
Rompe os moldes do mundo, enjeita de uma vez
Os grãos que engendram o homem ingrato!
Shakespeare faz uso de uma grande variedade de versos populares, como baladas, canções chulas, e cançonetas cômicas, cantadas ou declamadas pelo Bobo ou por Pobre Tom em Rei Lear. O tradutor valeu-se de aspectos formais da rica tradição do cancioneiro popular nordestino e dos romanceiros populares em cordel para transcriar a linguagem desses personagens para o português. Para ilustrar o abrasileiramento formal, vale citar pelo menos uma fala do Bobo, na qual ele faz uma profecia antes de desaparecer, traduzida em hendecassílabos (11 sílabas) no ritmo do repente nordestino conhecido como ‘beira-mar’, muito utilizado pelos cantadores:
BOBO: Se um dia a palavra do padre contar,
Com água o leite o leiteiro gorar,
E o nobre der aula ao seu costureiro,
Hereges poupados, jamais putanheiros;
Se um dia a justiça perder o seu descrédito,
O nobre, a pobreza, o pajem, o débito;
E nas bocas morrer a vil detração,
E o bate-carteira evitar multidão,
E putas e cáftens erguerem igrejas,
O reino de Albion
Vai ser confusão:
E o tempo virá, e quem viver verá
Que pra andar no mundo, os pés há de usar.
A recriação da fala do Bobo, apesar de seguir Shakespeare de perto, constitui um processo de transcodificação da poesia dramática do dramaturgo em uma nova linguagem — o repente — que, por apresentar dimensões sintáticas, rítmicas e sonoras conhecidas pelo leitor/ espectador brasileiro, seduz e emociona de imediato. Na recriação das falas do Bobo e de Pobre Tom, por meio da linguagem dos romanceiros em cordel, as duas situações de enunciação (fonte e alvo) mesclam-se, com destaque à enunciação-alvo.
No ato da leitura, como preconiza Wolfgang Iser, o texto fixado em seus significantes, torna-se maleável e, consequentemente, envolve uma atualização permanente do significado, permitindo, assim, a sobrevida de textos clássicos, os quais podem ser vistos como contingentes polívocos que não se perdem no tempo porque se renovam a cada leitura e nova tradução. No ato da leitura, o leitor imprime no texto marcas pessoais, contextuais, temporais e geográficas. E como todo tradutor exerce, em primeiro momento, a função de leitor, os processos tradutórios, de maneira semelhante, tendem a gerar produtos imbuídos de um novo tempo, espaço, sociedade e cultura. Por esse ângulo, a tradução poética dos clássicos é uma das tarefas mais necessárias, em parte porque possibilita a quem não conhece outra língua entrar em contato com formas de arte e experiências humanas que de outra forma teriam permanecido totalmente desconhecidas, mas, sobretudo, porque essa missão aumenta a expressividade e profundidade de significação da língua materna do tradutor.