Eu amo dormir. Minha vida tem a tendência de desmoronar quando estou acordado, sabe?

Eu amo dormir. Minha vida tem a tendência de desmoronar quando estou acordado, sabe?

Alguns dizem que o sono é irmão-gêmeo da morte. Eu discordo. Pode ser até que dormir seja a antessala do adeus à vida. A lucidez, o pseudo controle sobre nossos atos e situações, a pretensa sensatez cotidiana se esvaem quando fechamos os olhos. Neste instante perdemos os braços e ganhamos asas cintilantes. Sobrevoamos todo o universo, respirando o melhor oxigênio fabricado pela natureza.

Mergulhamos em momentos únicos e exóticos. Apaixonamo-nos por peixes enormes e abelhas. Encontramos razão de ser e plena satisfação em experiências surreais. Que maravilha, fomentar o descompromisso com a realidade. Deixá-la nua, órfã e crua. Soprar responsabilidades para além de qualquer horizonte. Esmigalhar certezas, calendários, agendas, sisudez.

Desconstruir a matemática e o desfile de equações de todos os graus. Asfixiar horários, paralisar relógios, apagar encontros e desencontros, antes inadiáveis e marcados a ferro e fogo. Contar histórias de fadas para astutas serpentes, distribuir anfetaminas para uma legião de caracóis e beijos íntimos entre tigres e leoas dóceis.

Os sonhos dão passagem a desejos e volúpias de todos os tamanhos. Acolhem absurdos com a tranquilidade de um rebanho de carneiros. Enfrentam tempestades como se estas coubessem placidamente num regador azul. Os sonhos enterram os sustos em locais desconhecidos. Matam os medos a sangue frio, nos tornam mais poderosos que os super-heróis das ficções contemporâneas.

É por isso que eu amo dormir. O sono me conduz através de fios de seda a países imaginários, habitados por criaturas lilases e casas comestíveis. Gigantescos bules de café fresco e fumegante posicionam-se em cada esquina de cidades mágicas, onde os guardas de trânsito ofertam doces aos motoristas em vez de multas. E até porque todos os cidadãos transitam sobre tranquilas bicicletas.

Imagine ser passageiro nesta vida, jamais o condutor. Deixar sua criança interior livre. Suja de barro, molhada chuva, lambuzada de Nescau. Uma criança sempre despenteada e escandalosamente alegre.

Dormir nos exime de qualquer culpa, afasta possíveis castigos da rotina, dilui num breve riacho prisioneiros, penas e prisões. Dormir abre as portas dos cárceres, enquanto liberta o inconsciente dos carrascos que o cercam, nas regiões inóspitas de verdades de pedra, erigidas pela geografia dos tempos e à nossa revelia.

Há quem durma de olhos abertos, flutuando sobre as ruas ou seguindo o belo trajeto das andorinhas. Há quem abrace o paraíso líquido contido em garrafas de álcool. Outros flertam com as possibilidades desenhadas por drogas promissoras. Alguns se entregam ao lento torpor de calçadas sujas, como os mendigos.

O sono, como substituto dos estados de vigília, destina-se aos covardes, fugitivos, dissimulados, fracos — bradarão veementes os juízes do bem viver. Outros afirmarão convictos que viver é uma questão de talento, já que a maioria das pessoas apenas existe.

Acordar muitas vezes é sinônimo de desmoronar. Deslocar-se sem freios nem metas pela rotina. Cair em emboscadas, desaparecer em areias movediças, acreditar piamente em miragens, cujos contornos diluem-se logo ao anoitecer. Mesmo assim, apesar das frustrações, insistimos em grudar os olhos no céu, à procura de estrelas e dos pálidos contornos de uma lua preguiçosa que nos cobre somente de abandonos.

Como é para você essa história toda? Sente tara por alvoradas? Tem nas mãos o leme dos seus projetos? Visualiza as curvas do seu destino, moldando-o conforme suas vontades? Jogou faz tempo o travesseiro e os bocejos pela janela – ou, ao contrário. elegeu sua cama como definitiva, prazerosa e confidente amante?

*Título tomado de empréstimo de Ernest Hemingway.

 

Graça Taguti

Professora e escritora.