O jornalista Patrick Radden Keefe, de 44 anos, da revista “New Yorker”, decidiu escrever uma história sobre o Exército Republicano Irlandês. Sobretudo um relato sobre os indivíduos que lidaram com o terrorismo e os que foram suas vítimas. O IRA era inimigo de tudo que cheirasse a Inglaterra. O resultado de sua pesquisa é o livro “Não Diga Nada” (“Say Nothing”). Inédito em português, o livro saiu em espanhol pela Reservoir Books sob o título de “No Digas Nada — Una Historia Real de Crimen y Memoria en Irlanda del Norte”, com 544 páginas e tradução de Ariel Font Prades. Jornais espanhóis, como “Abc”, “La Vanguardia”, “El Mundo” e “El Periódico”, publicaram resenhas e entrevistaram Keefe, autor de uma “obra-prima” premiada. O texto a seguir é uma síntese do que saiu nos quatro jornais a respeito do livro.
O autor não pretende, claro, humanizar o terrorismo do IRA. Mas frisa que tentou construir uma história, por assim dizer, do cotidiano dos terroristas e de seus combatentes. Uma história quiçá existencial — para além dos atentados e assassinatos. “Uma história de seres humanos”, afirma o autor, e não apenas dos “Troubles” (distúrbios) de Belfast. Keefe assinala que, em dezembro de 1972, integrantes do IRA entraram no apartamento de Jean McConville, uma viúva de 38 anos (o marido morrera de câncer) e mãe de dez filhos, e a sequestraram (ela vivia num bairro católico de Belfast). Os terroristas disseram às crianças que a mãe seria “devolvida”. Não foi. Eles a assassinaram — sob o argumento de que estaria repassando informações ao exército britânico. Não havia provas de que a jovem fosse “informante”. Tratava-se de uma infâmia típica da paranoia que acomete grupos políticos clandestinos e radicais. Trinta anos depois, encontraram o corpo enterrado numa praia.
Ao pesquisar sobre o assunto, lendo documentos e conversando com várias pessoas — esteve sete vezes na Irlanda —, Keefe descobriu o nome da pessoa que assassinou Jean McConville. Não foi fácil, porque ainda prevalece a lei do silêncio na Irlanda do Norte. A ordem para matá-lo teria sido dada por Gerry Adams, um dos líderes do IRA. Ele nega inclusive que tenha pertencido à organização paramilitar. Mas o levantamento confirma que, de fato, era um “terrorista muito ativo” na década de 1970. Dolours Price, uma jovem, participou da execução.
O repórter decidiu contar aos filhos de Jean McConville quem havia matado sua mãe. “Não queria que se inteirassem pela imprensa. Ficaram surpresos, pois não suspeitavam dessa pessoa.” Keefe ficou perplexo ao perceber que, apesar de ter documentado sua “denúncia” — factual e equilibrada —, nada aconteceu. Ninguém foi preso. “As provas que um jornalista necessita [para escrever] são de natureza distinta das que requer um tribunal”, contemporiza.
A guerra entre o IRA contra forças locais e o governo da Inglaterra provocou a morte de 3.500 pessoas — “muitos deles civis”. O “ETA matou, em toda a sua história, 864 pessoas. E a população atual da Irlanda do Norte é de apenas 1,8 milhão de habitantes”.
Ao visitar a Irlanda, ganhando a confiança de algumas fontes, Keefe percebeu, de imediato, que havia uma história oral sobre o conflito que não estava registrada nos jornais e em livros de história. Superada a desconfiança, as pessoas começaram a relatar o que havia acontecido, dando corpo a uma espécie de nova história. Ouvinte atento, o repórter começou a perceber que havia um descompasso entre o registro oficial e o que se dizia nas ruas, bares e residências. Uma história estava “escondida” por outra. Era um silêncio — uma negação — que gritava à espera de quem tivesse paciência e habilidade para resgatá-lo das sombras e sutileza da linguagem. Ao pôr o silêncio em livro, Keefe o tornou barulhento e, portanto, compreensível.
Por que os irlandeses decidiram se abrir com Keefe? Os jornais espanhóis, nas resenhas e entrevistas, não explicam a razão. Mas tudo indica que perceberam que o repórter e pesquisador pretendia contar uma história “honesta”, mais ampla e objetiva, o que não quer dizer imparcial. Aquele tipo de história que, quando terminamos de ouvi-la ou lê-la, concluímos: “Isso mesmo”. O jornalista, que escreveu uma obra de história a partir de uma perspectiva de repórter consciencioso, admite que a ação do IRA foi, de certa forma, desmedida. Mas também deve ser vista como uma reação aos excessos das forças estatais.
Keefe afirma que nuança os fatos, expondo as posições contrárias com o máximo de clareza e rigor, para permitir que, mais do que por ele, o julgamento seja feito pelo leitor.
A Irlanda fez as pazes consigo mesma, mas, ao não revelar os bastidores do que aconteceu, deixou um “trauma” que Keefe chama de “residual”. O livro, de alguma maneira, é uma catarse coletiva — um quase “diga tudo” (ainda que se saiba que ninguém nunca diz tudo, há sempre uma “reserva de proteção”). Uma sessão de psicanálise de um povo que busca se “curar” de suas fraturas expostas. Mas cicatrizes não se fecham se suas origens não forem reveladas, discutidas e, quem sabe, superadas.
As irmãs Dolours Price e Marian Price foram recrutadas pelo IRA e se tornaram terroristas. Eram “consideradas as terroristas mais glamurosas da Europa”. As duas participaram de assaltos a bancos, disfarçadas de monjas, e posaram para “revistas elegantes”. As Price sequestraram e mataram pessoas e colocaram bombas em locais públicos. As “execuções” eram consideradas “justas”, pois os membros do IRA acreditavam, de certo modo, que eram a Justiça.
A história de Dolours Price (1950-2013) fascinou Keefe, que ficou sabendo sobre ela a partir de um obituário do jornal americano “New York Times”, de 2013. “Era o exemplo de uma jovem seduzida pela política radical, que se envolveu ao máximo com a violência. (…) Me interessava retratar pessoas comuns que decidem, de repente, empunhar uma arma. (…) As irmãs Price eram atraentes, carismáticas. As pessoas se recordam de seu sorriso fascinante. Eram icônicas, um pôster para os católicos republicanos, como Che Guevara. Elas o sabiam e, hoje em dia, estariam no Instagram.” Quando as coisas se acalmam, muitos dos radicais não sabem mais o que fazer — é como se tivessem se tornado párias da história. Quer dizer, ficaram “fora” da história. O tempo passou, mas permaneceram, de alguma maneira, prisioneiros do passado.
O título do livro “Não Diga Nada” deriva de um poema do irlandês Seamus Heaney (1939-2013), Prêmio Nobel de Literatura de 1995. O poema é sobre a lei de silêncio que imperava e ainda impera na Irlanda do Norte. “O livro trata, na realidade, de como digerimos nosso passado”, diz Keefe. O repórter frisa que, “nos anos mais” tensos, “a maioria da população da Irlanda não apoiava a violência” nem dos conterrâneos nem dos ingleses e de seus aliados locais. “Mas o Ulster [Irlanda do Norte] era uma sociedade muito dura, os católicos estavam sendo discriminados, não tinham bons empregos, não podiam ter acesso ao poder político, e isso gerou simpatia pela ‘causa’.”
Keefe buscou inspiração para contar a história do IRA, sobretudo na caracterização dos personagens e na elaboração da trama, na literatura de John Le Carré e Frederick Forsyth e em reportagens de Gabriel García Márquez (que foi repórter), como “Notícia de um Sequestro” (Record, 320 páginas, tradução de Eric Nepomuceno), e de Philip Gourevitch, “Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias” (Companhia das Letras, 353 páginas, tradução de José Geraldo Couto). São “obras que mostram como aproximar-se literariamente da violência”, assinala o jornalista.
Companhia das Letras, Objetiva, Intrínseca e Record, para citar quatro editoras, devem ficar atentas ao premiado e elogiadíssimo livro de Keefe, um jornalista tido como rigoroso, notável e dono de um texto de escritor. “Não Diga Nada” foi considerado como o “melhor livro de 2019” pelos jornais “New York Times”, “Washington Post” e “The Times”. Portanto, editores patropis, mãos à obra.