Dance comigo até o fim do amor

Dance comigo até o fim do amor

O tumor na laringe de Anthem tinha deixado o timbre da sua voz parecidíssimo com o de Leonard Cohen. Então, começou a fazer apresentações cover do cantor canadense, cantando canções de amor e ódio que tratavam de problemas populares, num pub mal frequentado do setor portuário. Depois da pandemia, mesmo nos bares abandonados pelos ratos e pelas autoridades sanitárias, os clientes eram obrigados a seguir determinados protocolos de segurança, sob pena de não terem os copos reabastecidos de bebida.

Na portaria do Hallelujah, um bar onde ele se apresentava, sempre às terças-feiras chuvosas, com um violão em estado deplorável que ele tinha encontrado numa lata de lixo do Chelsea Hotel No.2, um par de brutamontes aferia a temperatura corporal dos frequentadores tocando as suas testas com as costas das mãos, como as mães faziam antigamente. A maioria da clientela ria do procedimento, achava um exagero, mas acabava se submetendo à humilhação, pelo simples fato de que queriam fumar, se embriagar, se divertir e, quem sabe, conhecer alguém atraente para fornicar e trocar micróbios.

Dentro do boteco, a clientela era alocada em pequenos grupos, definidos de acordo com a afinidade racial e política, dentro de redomas de acrílico à prova de garrafadas, como se fossem jaulas translúcidas. Enfurnados naqueles nichos sépticos onde cabiam até oito pessoas, os notívagos podiam ficar mais ou menos à vontade, untando-se com álcool em gel, enchendo a cara com Cuspe Sour, cheirando giz-mágico e se amassando dentro do limite do razoável, sem espirrar partículas de sêmen uns nos outros, como se fossem animais.

O sistema de distanciamento social era um inferno, contudo, crucial para a viabilidade financeira do Estado, que precisava continuar arrecadando impostos, e só poderia fazer isso se os contribuintes continuassem vivos. A humanidade já tinha passado pela Peste Negra. Pela sífilis. Pelo Mal dos Sete Dias que acabava mesmo matando, mais dia, menos dia. Pela Gripe Espanhola, que sequer era espanhola. Enfim, já estavam todos putos-com-deus, provados e escaldados com as ameaças de extinção da humanidade que, volta e meia, aturdiam nações inteiras. Não custava seguir os cuidados básicos para se manter vivo, ainda que, na maior parte do tempo, para a maior parte das pessoas, viver, simplesmente, não representava grande coisa, não fazia tanto sentido, exceto, quando estavam bêbados ou escapavam de um ataque à faca.

Irmãs de misericórdia… Que droga de voz áspera era aquela? Que droga de música alta era aquela? O público perguntava, apupava, importunava os pobres dos garçons não-sindicalizados que mais pareciam astronautas, induzidos a tratar bem a clientela, custasse o que custasse, uniformizados com escafandros de plástico-bolha, à prova de saliva e perdigotos. Antes de se tornar uma celebridade musical, Leonard Cohen tinha se saído bem publicando livros, até sacar que, provavelmente, continuaria a ser pobre e pouco reconhecido se insistisse naquela coisa de literatura, mesmo vivendo no Canadá, um país com IDH bem acima da média. Então, começou a compor e a cantar. Fez enorme sucesso por causa do estilo minimalista, da voz grave, suave, sensual, que, de tão densa, até parecia tátil. Chamavam a atenção as letras das composições, que eram poesia pura, de qualidade superior. Nem sempre os clientes do Hallelujah compreendiam isso, que poesia tinha lá a sua importância na porra da vida que as pessoas levavam.

Vestido com a famosa capa de chuva azul, Anthem sempre começava o show cantando “So long, Marianne” e “Dear Heather”, suas canções prediletas. Imitar Leonard Cohen era um tipo de negócio que seguia em banho-maria, agradando muito mais às mulheres e aos efeminados, do que aos homens que, além de possuírem baixíssimas autoestima e sensibilidade artística, jamais tinham aberto um único livro de poemas. No início, a plateia masculina achava o show enfadonho, quase como um blues, tentando atirar pertences perfuro-cortantes no palco, até conseguir se embriagar o suficiente para prescindir do repertório.

O fundamental, como sempre, era o dinheiro. A grana, finalmente, entrava no seu bolso. Estava se dando bem com aquela imitação tacanha de Leonard Cohen. Esperando pelo milagre, pensava em se curar do câncer na garganta, obviamente. Porém, tinha receio de que o tratamento com quimioterápicos pudesse afinar de volta a sua voz, assim que aquele tumor, agarrado às cordas vocálicas, e que era do tamanho de um besouro rola-bosta, murchasse, retrocedesse com os remédios prescritos, a ponto de ser chamado de “formiguinha”, pelo médico especialista em metáforas lúdicas tumorais.

Chupador nato de bucetas, dividia o seu temor com Suzanne, a garçonete novata. Aplicou nela mil beijos profundos, em posições variadas, colocando em prática velhas ideias.

— Eu sou o seu homem, ele disse.

— Ei, este não é o jeito de se dizer adeus, ela debochou, contorcendo o corpo de prazer, como um novelo.

— Olhando pra você, sinto-me como um pássaro no fio.

— Você quer mais escuro?

— Acho que te amo, Suzanne.

— Não diga isso. Não há cura para o amor.

— Eu te amo.

— Obrigado pela dança, Anthem. Muito obrigado mesmo.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.