Moacyr Scliar (1937-2011) abordou o cientista e médico Oswaldo Cruz de duas formas — como biógrafo, no livro “Oswaldo Cruz — Entre Micróbios e Barricadas” (Relume Dumará, 101 páginas), e como escritor, no romance “Sonhos Tropicais” (Companhia das Letras, 212 páginas). O estudo da vida do cientista paulista, especializado no Instituto Pasteur, na França, não é alentado. Mesmo assim, apresenta muito bem um personagem relevante para o Brasil — “original e extraordinário” — que viveu entre dois séculos, o 19 e o 20, entre 1872 e 1917. Viveu apenas 44 anos.
O pai de Oswaldo Cruz, Bento Gonçalves da Cruz, era médico-sanitarista. O jovem decidiu seguir a mesma profissão. Na Faculdade de Medicina, não era brilhante, mas, desde o início, se interessou pelo laboratório de bacteriologia. Sua tese de doutoramento ganhou o título de “A Veiculação Microbiana pela Água”. Era evidente, já então, a paixão pela microbiologia. Era a paixão de sua época, anota Moacyr Scliar.
“As últimas décadas do século 19 viram uma mudança radical na medicina: a revolução pasteuriana, que fornecia a chave para o entendimento — e para a prevenção — daquela velha companheira do ser humano, a doença infecciosa”, escreve Moacyr Scliar. A hanseníase (chamada de lepra), a peste e a varíola eram o terror dos homens. “No século 16 a sífilis faz sua entrada no cenário europeu. (…) O nome vem de um poema de Girolamo Fracastoro (1478-1553), ‘Syphilis sive morbus gallicus’ (“Sífilis ou a doença francesa”). Os franceses falavam em ‘mal napolitano’. É a história de um jovem pastor, Syphilus, punido pelo deus Apolo com a sombria enfermidade”.
Noutra obra, “De contagione et contagiosis morbis et curatione”, Girolano Fracastoro postula que “as doenças contagiosas são causadas por partículas vivas, invisíveis, que ele chama de ‘seminaria’ ou ‘vírus’. Trata-se de uma intuição admirável”, frisa Moacyr Scliar. Com o microscópio — inventado no século 17 por Anthony van Leeuwenhoek (1632-1723), um lojista —, Louis de Ham, estudante de medicina em Leyden, descobriu os espermatozoides.
Mais tarde, o obstetra húngaro Philipp Semmelweiss (1818-1865) constatou, em Viena, que “óbitos por febre puerperal, doença que acomete mulheres depois do parto, ocorriam em maior número nas enfermarias atendidas por médicos do que naquelas que estavam a cargo de parteiras”. O médico observou que, depois de fazer “as necropsias nas mulheres falecidas”, seus colegas faziam partos — sem luvas.
Semmelweiss descobriu que as mãos dos médicos estavam contaminando as mulheres. O reparo, correto, não foi bem aceito. Enlouquecido, o talentoso médico “corria pelas ruas, gritando ‘lavem as mãos, lavem as mãos’”. Morreu num hospício, em Viena, “vítima de espancamento”.
O britânico John Snow (1813-1858), investigando o cólera, “descobriu que estava associado com a água de abastecimento, que era então distribuída por carros-pipa”.
Louis Pasteur (1822-1895) é o especialista decisivo para o avanço da ciência no tratamento das doenças infecciosas. “A microbiologia ganhou impulso no momento em que Pasteur, químico que dominava o manejo do microscópio, estudou, a pedido de industriais do vinho, o processo de fermentação, evidenciando a presença das leveduras que o causam”, aponta Moacyr Scliar. Depois, examinando a “doença que atacava o bicho-da-seda”, o cientista “constatou que se tratava de infecção, evitável pela separação dos ovos contaminados”.
Aos 59 anos, depois de um acidente vascular cerebral (AVC), que deixou seu corpo “parcialmente paralisado”, Pasteur descobriu a vacina contra a raiva, doença que matava várias pessoas. Ele se tornou mais conhecido do que Carlos Magno e Napoleão. Era uma celebridade internacional. D. Pedro II e o cientista se correspondiam.
Aproveitando sua fama, Pasteur criou o Instituto Pasteur e reuniu a nata dos cientistas de seu tempo, como Paul Émile Roux (“um dos descobridores do soro antidiftérico”), Alexandre Émile Yersin (“que descobriu, junto com Shibasaburo Kitasato, o bacilo da peste bubônica”), Albert Calmette (“um dos criadores do BCG — bacilo de Calmette e Guerín”) e Ilya Metchnikoff (“o primeiro a estudar a fagocitose”; “seus estudos mostram “que a luta pela sobrevivência se desenrola dentro do organismo, as células de defesa tentando englobar e destruir os germes invasores”). Os citados e mais alguns — inclusive de outros países, como a Alemanha — revolucionaram a ciência… para salvar vidas.
O médico Oswaldo Cruz empolgou-se o que estava ocorrendo na Europa, sobretudo na França, no Instituto Pasteur. Casado com Emília, a namorada da adolescência, ganha do sogro, abastado comendador, “um laboratório completo, que instala no primeiro andar de sua casa”.
O médico Sales Guerra convida Osvaldo Cruz “para organizar e dirigir um pequeno laboratório de análises clínicas na Policlínica Central do Rio de Janeiro”. O médico era calado — “já me arrependi de ter falado, nunca de ter calado” — e, nos momentos de folga, aprendia alemão. Sabia francês, espécie de segunda língua do Brasil entre os séculos 19 e o início do século 20 — ao menos entre os mais abastados (diga-se que o médico não era rico).
Na França, no Instituto Pasteur
Para sobreviver, Oswaldo Cruz trabalha como clínico e laboratorista. Mas queria ser cientista. O médico Francisco de Castro, percebendo seu desassossego, sugere que deveria estudar em Paris, no Instituto Pasteur.
Apoiado pelo sogro, Oswaldo Cruz muda-se para Paris, em 1896, com sua família.
Na capital francesa, interessa-se, num primeiro momento, pela urologia. Depois, trabalha no Laboratório de Toxicologia de Paris, com Ogier e Vibert. Torna-se leitor de Cesare Lombroso (1836-1909) e chega a escrever uma carta ao “alienista” para contar-lhe um caso ocorrido no Brasil. Lê também a poesia de Baudelaire e a prosa de André Gide e Anatole France e admira o teatro de Sarah Bernhardt.
Um homem morre intoxicado por gás, não se sabe se o da iluminação ou o do aquecedor. Ogier e Vibert sugerem que Oswaldo Cruz tente formular uma explicação plausível. O médico patropi intui que “é a composição do gás extraído do sangue do morto que fornecerá a verdade”. Os franceses apreciaram.
Mas o que o empolga mesmo é a bacteriologia. Por isso, procura o Instituto Pasteur, “onde é recebido com tanta atenção que chega a ficar desconfiado: dispensam-no até de pagar, como é de praxe para os estagiários, o material e os animais utilizados em suas experiências. Émile Roux, seu mentor, explica: é o primeiro brasileiro que ali estuda. E o Brasil é a terra de Dom Pedro II, a quem o Instituto é grato pela ajuda”.
O pesquisador russo Ilya Metchnikoff, que sabia português, se torna amigo de Oswaldo Cruz. Trocam informações. Em Paris, o brasileiro acompanha o caso do capitão Alfred Dreyfus. Judeu e oficial do exército francês, acusado de passar informações à Alemanha, foi condenado e preso. Parte da França, com o escritor Émile Zola na linha de frente, levantou-se para defendê-lo. O espião era outro, o major Esterahazy, “jogador endividado”. Numa carta, na qual defende Dreyfus e Zola, o brasileiro critica a demagogia dos políticos e da sociedade.
Em Paris, Oswaldo Cruz quer aprender quase tudo que permita que se torne um cientista de ponta. “Chega a estagiar numa fábrica de vidraria para laboratório; no Brasil esta técnica é desconhecida, ele a trará junto com seus conhecimentos de bacteriologia — e será o primeiro a fabricar ampolas no Brasil”, relata Moacyr Scliar.
No retorno ao Brasil, Oswaldo Cruz, apesar de especializado no celebrado Instituto Pasteur, tendo trabalhado ao lado dos cientistas mais requestados do mundo, não é recebido com banda e fanfarra. Volta, modestamente, a trabalhar na Fábrica de Tecidos e na Policlínica.
Oswaldo Cruz abre um consultório de doenças geniturinárias e um laboratório especializado. Leva uma vida sossegada, mas sua alma é prenhe de desassossego.
Manguinhos e a peste em Santos
Em outubro de 1899, a paz, que não queria, acaba. Às duas horas da madrugada, recebe notificação “da Diretoria Geral de Saúde Pública para investigar, junto com dois famosos cientistas de São Paulo — Adolpho Lutz e Vital Brazil —, casos suspeitos de febre bubônica, no Hospital de Isolamento em Santos”.
O café, principal produto brasileiro, é exportado pelo porto de Santos. Mas doenças também chegam pelo porto. Na cidade, Lutz, Vital Brazil e Oswaldo Cruz dividem as tarefas. “A Oswaldo caberá colher, dos pacientes, o material para o diagnóstico.” Sua experiência no Instituto Pasteur é decisiva e o cientista é peremptório: “A moléstia reinante em Santos é a peste bubônica”. Médicos locais discordaram. “Lutz enviou amostras das culturas a laboratórios europeus, que confirmaram o diagnóstico de peste.”
Na época, não havia antibiótico. “O único e duvidoso tratamento para a doença era o soro antipestoso, que tinha de ser importado — a menos que o Brasil o fabricasse em institutos soroterápicos. Dois desses estabelecimentos foram então criados: um em São Paulo, no Instituto Bacteriológico, a ser dirigido por Vital Brazil, outro no Rio, o Instituto Soroterápico do Rio de Janeiro”.
O prefeito do Rio, Cesário Alvim, nomeou o barão de Pedro Afonso para dirigir o Instituto Soroterápico na fazenda Manguinhos. O médico e barão, em busca de um diretor técnico, viajou para Paris para contratar um cientista do Instituto Pasteur. Mas havia dois problemas. Primeiro, o salário baixo não era atrativo. Segundo, a febre amarela assustava inclusive cientistas de nomeada. O barão ficou de mãos abanando.
O barão de Pedro Afonso pediu a Émile Roux que lhe indicasse um profissional. “O cientista replicou que não era necessário procurar um cientista em Paris, o brasileiro Oswaldo Cruz preenchia perfeitamente as condições.”
O barão convidou Oswaldo Cruz para o cargo. O cientista listou o que precisava, e Pedro Afonso achou dispendioso. O médico não voltou ao trabalho e o barão capitulou. “Fabricar soro era uma operação complexa: inoculavam-se animais — cavalos — para que eles produzissem os anticorpos, depois aplicados em seres humanos. (…) Oswaldo fazia tudo. Não apenas cuidava das culturas microbianas, como treinou técnicos, estudantes, funcionários — em tudo: lavava ele mesmo a vidraria, fazia a limpeza dos instrumentos. Naquele ano de 1900 o soro estava sendo produzido e Manguinhos começava a tornar-se um centro de pesquisa científica, atraindo muitos profissionais”, historia Moacyr Scliar.
Apesar do sucesso da empreitada, Oswaldo Cruz e o barão, atritados, acabaram deixando os cargos. Entretanto, como era mais útil do que o aristocrata, acabou reintegrado, e como “diretor único”.
A febre amarela, o mosquito e a peste
O Rio de Janeiro — chique é escrever apenas Rio — era cheio de cortiços, precursores das favelas, e doenças.
“O Rio era assolado por pestilências: a varíola, a peste, o cólera”, assinala Moacyr Scliar. “A febre amarela era tão frequente que as companhias de navegação europeia anunciavam viagens diretas a Buenos Aires, sem o risco de passar pelo Brasil. Doença viral que se manifesta por febre e icterícia — daí o nome —, a febre amarela era velha conhecida dos brasileiros: a primeira epidemia teria ocorrido em Recife, em 1865.” Muitas pessoas morreram. As igrejas ficaram lotadas de cadáveres.
Moacyr Scliar frisa que, “dois séculos depois, a febre amarela retornou, desta vez trazida por um navio americano — ironicamente denominado Brazil — que procedia de Nova Orlenas e aportou em Salvador. Daí disseminou-se pelo Brasil inteiro. Quase três quartos dos 41 mil habitantes de Fortaleza adoeceram; cerca de mil óbitos foram registrados”.
O clínico Torres Homem sugeriu que os “ares corruptos” eram a causa da febre amarela. Era a teoria do miasma. Estava errado, mas era a ideia dominante. O médico Carlos Juan Finlay, de Havana, concluiu que um mosquito — “Culex fasciatus” (atual Aedes aegypti) — era o responsável pela febre amarela. Cinco voluntários aceitaram ser picados e contraíram febre amarela — o que comprovou a “teoria” do clínico de Cuba. Entretanto, por não ter renome, pois não era um cientista consumado, sua interpretação foi contestada.
Os médicos Walter Reed, James Carroll, Jesse Lazear e Aristides Agromonte decidiram estudar a doença e pediram informações a Carlos Juan Finlay. Os pesquisadores bancados pelos Estados Unidos fizeram experimentos, seguindo a tese de Finlay, e concluíram que o médico tinha razão.
De longe, Oswaldo Cruz acompanhava as pesquisas e “era um ardoroso defensor da ‘teoria havanesa’”. O cientista patropi disse: “Não é o doente que comunica a febre amarela. Não são as roupas e os objetos… É o mosquito”. O diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, Emilio Ribas, concordava com o discípulo de Pasteur e, por isso, “desencadeou uma campanha de combate ao mosquito, considerada a primeira do gênero”.
Em 1903, o médico Sales Guerra foi convidado pelo ministro da Justiça e Negócios Interiores, J. J. Seabra, para assumir a Diretoria de Saúde Pública. Como não era sanitarista, recusou o cargo, mas indicou o nome de Oswaldo Cruz, que era seu amigo.
O presidente Rodrigues Alves, um político que respeitava a ciência, sabia que a febre amarela estava prejudicando a economia brasileira, sobretudo a exportação de café, e uma filha havia falecido por causa da doença. Um filho do presidente, Oscar, estudante de medicina, disse que o cientista Oswaldo Cruz tinha méritos. Foi nomeado.
Oswaldo Cruz não era político e não era homem de promessas. Mesmo assim, disse que, se lhe fossem dados “força e recursos”, acabaria “com a febre amarela em três anos”. Tomou posse no fim de março de 1903. De cara apresentou uma exposição de motivos: “É preciso eliminar os mosquitos e identificar os portadores da doença”. O objetivo era isolá-los. (Ao mesmo tempo em que combatia as doenças, Rodrigues Alves deu poder a Francisco Pereira Passos, o prefeito nomeado, para modernizar o Rio. Inspirado no trabalho do barão Haussmann, que reformulou Paris, Pereira Passos criou o Rio que se vê hoje, com ruas mais largas e arquitetura moderna.)
A operação caça-mosquitos era vista com ceticismo pela população e ironizada pela imprensa. A Faculdade de Medicina do Rio era hostil. Mas, orientados pela equipe de Oswaldo Cruz, os funcionários do governo entravam nas casas “em busca de focos de insetos. A campanha tinha sido montada por Oswaldo como operação militar”. Mesmo sob intensa pressão, o cientista não recuou. Porque sabia que, ao combater o mosquito, estava fazendo a coisa certa.
Ao mesmo tempo, Oswaldo Cruz começou uma campanha contra a peste. “A base do trabalho era a desratização, ou seja, o extermínio dos ratos que albergam as pulgas transmissoras da doença.” O ataque ao cientista era diário. “Oswaldo Cruz chegou a ser retratado como um cômico flautista de Hammerlin.”
Ao adotar o sistema americano na Filipinas, o país, com a imprensa na comissão de frente, caiu de pau. O sistema “consistia em pagar aos integrantes da brigada ‘anti-rato’ pelo número de animais capturados, a 300 réis por cabeça, gratificação esta se se estendeu à população. O que imediatamente gerou um novo tipo de comércio: gente que comprava ratos para revendê-los ao governo”, informa Moacyr Scliar.
A campanha anti-ciência era ativa e articulada. Mas Oswaldo Cruz era tão corajoso quanto persistente. Em 15 de dezembro de 1903, a Câmara aprovou o regulamento sanitário. A febre amarela estava cedendo. O poeta Olavo Bilac, que antes era irônico, mudou de tom: “Parece mentira, mas é verdade: estamos em fevereiro, as cigarras estouram, o sol incendeia a cidade e não há febre amarela”. “Em abril, os casos de pestes caíram praticamente a zero”, diz Moacyr Scliar.
Vacina contra a varíola e a revolta popular
Como o Brasil não é um país para brincadeiras, depois da peste e da febre amarela, Oswaldo Cruz teve de combater a varíola, “doença” que, como sublinha Moacyr Scliar, “devastava populações, matando e deformando”.
O médico Edward Jenner (1749-1823) é o responsável pela vacina antivariólica. Certa feita, “ouviu de uma camponesa a informação de que não pegava varíola quem se contaminava com as lesões da varíola, a ‘vaccinia’”. Intrigado, passou 20 anos pesquisando e, “a 4 de maio de 1796, inoculou o menino James Phipps, de 8 anos, com líquidos de pústulas de ‘vaccinia’. Surgiu a característica lesão vacinal, da qual o garoto rapidamente curou-se. A 1º de julho, Jenner inoculou-o de novo, desta vez com o líquido de uma pústula variolosa. Nada aconteceu: James Phipps estava imunizado contra a varíola”.
Como Edward Jenner era um médico do interior, ainda que observador e cientista nato, os membros da Royal Society duvidaram de seu experimento. Os médicos ingleses só aceitaram a tese do conterrâneo depois que, noutros países, várias pessoas foram vacinadas com resultados positivos. Moacyr Scliar frisa que “os pobres não eram vacinados”.
Mesmo com a vacina, observa Moacyr Scliar, “à época de Oswaldo Cruz, erradicação era uma possibilidade remota; a varíola era endêmica no Brasil”. A República garantiu por lei a vacina obrigatória, mas, na prática, não era. “Embora o imunizante estivesse disponível em postos de vacinação, a demanda era mínima. Em 1904 os casos de varíola começaram a crescer assustadoramente; em meados do ano o número de internações pela doença no Hospital São Sebastião há chegava a 1.800.”
Manuel José Duarte conseguiu aprovar no Senado a instituição da vacina obrigatória. Mas parte da sociedade era contrária. O senador Barata Ribeiro, médico e professor da Faculdade de Medicina, vociferou que a vacinação obrigatória feria a liberdade individual. “Prefiro morrer”, professava, “a deixar-me vacinar”.
Os positivistas também condenaram a vacinação. Diziam, na síntese de Moacyr Scliar, que “a vacina teria sido preparada com material purulento retirado de animais ‘sifilíticos’”. Entre os positivistas estavam Lauro Sodré e Barbosa Lima, políticos influentes.
O legista Cunha e Cruz concluiu que uma mulher havia falecido após tomar a vacina. Oswaldo Cruz reexaminou o cadáver e impugnou o laudo do médico.
Lauro Sodré, além de sua posição positivista, era contra o governo do presidente Rodrigues Alves, apresentado como representante da oligarquia do café. Aliado a Alfredo Varela, dono de “O Commercio do Brasil”, jornal bancado por monarquistas, Lauro Sodré articulou violentos ataques à vacinação obrigatória. Inclusive o movimento operário postou-se ao seu lado. 15 mil pessoas assinaram uma lista de protesto do Centro da Classe Operária, dirigido por Vicente de Souza.
Ante o ataque visceral dos “inimigos da vacina”, o governo recuou e permitiu “a vacinação por médico particular”. Mas nova crise surgiu porque “o atestado que seria necessário para tudo — matrícula, casamento, título eleitoral — tinha de ser validado pelo governo, sob pena de não aceitação e até de multa”. O rigor, considerado excessivo, levou a ataques a Oswaldo Cruz, inclusive de aliados, como o jornal “O Paiz”.
“Uma Liga Contra a Vacinação Obrigatória foi fundada, junto ao Centro da Classe Operária, a 5 de novembro”, conta Moacyr Scliar. Seu presidente, Lauro Sodré, cobrou resistência “a bala”. Vicente de Souza apresentou outro motivo de rejeição da vacina: “A esposa e a filha terão de desnudar braços e colos para os agentes da vacina”.
No dia 10 de novembro de 1904, durante uma manifestação de estudantes contra a vacina, a polícia reagiu com violência e fez prisões. No dia seguinte, a manifestação continuou e houve trocas de tiros. “No dia 12 o número de pessoas na rua cresceu consideravelmente; numa grande reunião realizada no Centro das Classes Operárias, Lauro Sodré, Barbosa Lima e Vicente de Souza conclamaram o povo a resistir contra a vacina obrigatória.” No dia 13, a rebelião estava armada. “Lauro Sodré e o general Travassos conseguiram a adesão dos cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha.” No choque, pessoas dos dois lados ficaram feridas — inclusive Lauro Sodré e Travassos.
Sugeriram a Rodrigues Alves que se refugiasse num navio da Marinha, mas o presidente rejeitou o conselho. Ele acreditava que “a vacina obrigatória estava apenas servindo de pretexto para a revolta contra o governo”. De fato, era. Mas a revolta havia se tornado popular. Oswaldo Cruz, além de vaiado, teve o carro apedrejado. “Uma das pedras atingindo-o na testa.” Populares tentaram invadir sua casa, e Oswaldo Cruz teve de escapar pelos fundos.
O Exército e a Marinha prenderam centenas e alguns chegaram a ser deportados. A rebelião havia sido contida. Mas Oswaldo Cruz continuou recebendo ameaças. Uma carta anônima, assinada pela “Sociedade de Salvação Pública, avisou-o “que seria assassinado juntamente com o presidente e o prefeito”.
A vacinação acabou suspensa. E um novo surto “ocorreria em 1908, com mais de 9 mil casos.
Nasce o Instituto Oswaldo Cruz
Acossado, Oswaldo Cruz sugere a transformação do Instituto Soroterápico numa instituição semelhante ao Instituto Pasteur, “mas voltada para o estudo e a prevenção das doenças tropicais”.
Apesar do veto do Congresso, Oswaldo Cruz, como diretor de Saúde Pública, “usou parte da verba das campanhas sanitárias para a construção do conjunto arquitetônico” (chegou a ser acusado de desviar dinheiro público — o que não restou provado). “Manguinhos (atual Instituto Osvaldo Cruz) era, e é, uma obra arquitetônica sui generis. Para projetá-la, Oswaldo chamou o arquiteto português Luiz de Morais Junior, homem de espírito eclético e arrojado. (…) Externamente, e sempre de acordo com Oswaldo, Morais projetou o Instituto como um exótico palácio mourisco; no entanto, o ambiente de trabalho era verdadeiramente monástico”.
Apesar das incompreensões iniciais, Oswaldo Cruz estava consagrado local e internacionalmente. A imprensa passou a chamá-lo de “saneador do Rio de Janeiro”. Ao voltar de Berlim, onde sua equipe recebeu um prêmio, “é recebido por grande manifestação popular”. Ele deixa o cargo de diretor de Saúde Pública e ocupa-se do instituto.
“Examinando a própria urina”, Oswaldo Cruz, “constatou a presença de albumina”. Era um mal sinal. Mas o cientista não para. Em 1910, a pedido da Companhia Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, decidiu supervisionar as condições sanitárias da região.
A malária era endêmica na região dos rios Madeira e Mamoré. A doença grassava entre os trabalhadores que construíam a ferrovia. De Porto Velho, Oswaldo Cruz foi para a vila de Santo Antônio. “Um verdadeiro horror do ponto de vista sanitário”, concluiu. “Sem o mínimo exagero pode-se afirmar que toda a população de Santo Antônio está infectada pelo impaludismo”, constatou. “Quinino mais mosquiteiro é igual a malária zero”, explicou aos moradores da região. Para a Amazônia, no boom da produção da borracha, vão os médicos Carlos Chagas, Pacheco Leão e João Pedroso.
Carlos Chagas, um dos próceres do instituto de Manguinhos, estuda o que causava a doença de Chagas e descobre seu agente causador, o Trypanosoma cruzi (o “cruzi” é uma homenagem ao Cruz de Oswaldo). O barbeiro era a causa da doença. O instituto ficou famoso e recebeu até a visita de um ex-presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt.
Em 1912, ante o seu valor como cientista, responsável por salvar vidas, Oswaldo Cruz entra para a Academia Brasileira de Letras. Aos 40 anos, “é um homem precocemente envelhecido, com a cabeleira grisalha”. O problema renal continua.
Oswaldo Cruz aceita, em 1915, a incumbência do presidente (governador) do Estado do Rio para “dirigir uma campanha contra a formiga saúva”. Mas ele está “muito doente, a uremia se manifesta em toda a intensidade: soluços, náuseas, vômitos. Está hipertenso, a visão começa a lhe faltar”. Muda-se para Petrópolis, onde cultiva rosas. “Um pouco de perfume para neutralizar o seu nauseante odor interno, um pouco do contato aveludado na pele que a doença tornou seca e áspera”, relata Moacyr Scliar, igualmente médico.
O governador do Rio nomeia Oswaldo Cruz para prefeito de Petrópolis. Como não fugia de desafios, aceitou assumir a prefeitura recém-criada. Entretanto, políticos locais não gostaram de seu programa — “que taxará terrenos baldios para evitar especulação (e fará uma rede de esgotos, e construirá escolas, e plantará rosas por toda parte)”.
Mas logo Oswaldo Cruz tem de deixar a prefeitura. “Um descolamento da retina torna-o praticamente cego.” No dia 11 de fevereiro de 1917, o cientista morre, aos 44 anos. Além da família, estavam ao seu lado os amigos Sales Guerra, Carlos Chagas, Ezequiel Dias, João Pedroso e Belisário Penna.
As exigências de Oswaldo Cruz são de um homem espartano, registra Moacyr Scliar: “Não quer que vistam o corpo: ‘Pode ser envolvido num simples lençol’. E aos seus pede: ‘Divirtam-se, passeiem, ajudem o tempo na benfazeja tarefa de esquecer’”. Depois, recomenda: “Não usem roupas negras, que são anti-higiênicas em nosso clima”. O biógrafo nota que esta determinação o próprio não cumpria.
Ciência “nasce” com o Instituto Oswaldo Cruz
Nos capítulos finais do livro, Moacyr Scliar faz um ligeiro balanço da vida e da obra de Oswaldo Cruz.
“Oswaldo Cruz é uma figura multifacetada, fascinante em todos os seus aspectos, inclusive nas contradições”, nota o biógrafo. Ao se interessar pela microbiologia, estava “perfeitamente sintonizado com as tendências de seu tempo. O microscópio era então o grande instrumento da ciência médica”.
Não era político, e sim um homem público. Por isso colocou todo o seu conhecimento a serviço da saúde pública. “Em Oswaldo havia o germe do sanitarista.”
“Diretor de Saúde Pública, Oswaldo Cruz foi antes de tudo fiel à ciência. A honestidade de seus princípios é admirável; mais que isto, usou seus sólidos conhecimentos para tomar decisões acertadas. Médico, ele estava muito à frente da medicina de seu tempo, identificando corretamente causas e mecanismos de transmissão de doenças ainda objeto de discussão”, relata Moacyr Scliar.
A pesquisadora americana Nancy Stepan, no livro “Gênese e Evolução da Ciência Brasileira” (Artenova/Fundação Oswaldo Cruz), sugere que no instituto criado pelo cientista está a gênese da ciência brasileira.
A “obra” de Oswaldo Cruz “é verdadeiramente revolucionária”, admite Moacyr Scliar, um sanitarista. “O Instituto Oswaldo Cruz foi o primeiro instituto de pesquisa propriamente dito na história do Brasil, o primeiro a fazer contribuições científicas durante um tempo constante, o primeiro a dar ao Brasil uma reputação científica no estrangeiro”, afirma Nancy Stepan. O biógrafo acrescenta: “Muito importante, esta contribuição científica nasceu do estudo das doenças de massa que afetam o país”.
“A figura de Oswaldo despertava, e desperta, uma genuína emoção”, anota Moacyr Scliar.
História do pai tão disciplinador quanto inspirador
Oswaldo Gonçalves Cruz nasceu, em São Luís do Paraitinga, em São Paulo, a 5 de agosto de 1872. O pai era o médico Bento Gonçalves Cruz e a mãe Amália Taborda de Bulhões. Culta — lia Dante, em italiano, e os românticos franceses —, foi a primeira professora do filho.
Certa vez, estando em sala de aula — era aluno do primário —, um funcionário da escola avisou-o que precisava voltar urgente para sua casa. Ansioso e assustado, o menino entrou na residência. De cara, o pai disse que não havia arrumado a cama. Sem reclamar, o menino cumpriu sua tarefa e Bento Gonçalves Cruz, que queria inculcar-lhe disciplina, ficou satisfeito.
Mais tarde, para impressionar a namorada Emília, o adolescente corta um pedaço do vestido de uma mulher. Ao saber da história, o pai obriga Oswaldo Cruz “a ir à casa da senhora. De lá ele volta com o vestido, que a mãe costura”.
Oswaldo Cruz começou a fumar, mas, adolescente, foi aconselhado pelo pai a parar. O jovem perguntou: “Mas papai também não fuma?” Daquele dia em diante, Bento Gonçalves Cruz parou de fumar. Mais uma lição de disciplina, de educar pelo exemplo.
O pai era rígido, mas Oswaldo Cruz se identificava com ele, tanto que seguiu a mesma profissão. Tornou-se, como Bento Gonçalves da Cruz, médico-sanitarista.