Quando nosso cão morre, morre um pouco de nós

Quando nosso cão morre, morre um pouco de nós

Eu chorava, mas não era um choro qualquer. Era um pranto com suspiros e soluços, de um jeito tão primitivo que tive vergonha de mim mesma; mas ele não se importou. A uma distância de meio metro de mim, ele me observava com seus olhos amendoados e aflitos. Sem me julgar, esperava com a cabeça levemente pendida para o lado. Após um espasmo doloroso meu, ele se aproximou e colocou a patinha sobre meu joelho. Ele dizia, em silêncio: “não se preocupe, humana, eu estou aqui”.

Esse cãozinho foi presente da minha mãe para o meu pai, no início da Copa do Mundo de Futebol de 2006. Ele tinha 2 meses e foi chamado Kaká em homenagem ao jogador que fez o primeiro gol do Brasil na Copa. Recentemente nosso Kaká morreu, aos 14 anos, devido a um câncer de fígado.

Kaká era o fiel companheiro do meu pai, mas tinha amor de cão para todos nós. O vira-lata conquistou as três gerações da família. Durante o período em que morei com meus pais, ele era meu parceiro de caminhadas, e passava a tarde debaixo da minha escrivaninha enquanto eu estudava. Meus sobrinhos adoravam chegar na casa dos avós para brincar com ele.

Quem tem cachorro em casa conhece bem essas cenas: o cão fica na porta do banheiro enquanto tomamos banho; se deita no sofá enquanto assistimos à televisão; fica embaixo da mesa enquanto a família almoça, à espera de pedacinhos de carne; sabe quando alguém vai viajar só de ver a mala aberta em cima da cama (aí faz cara de coitado e anda com o rabo baixo) e adora roubar meias usadas de dentro dos tênis.

Kaká nos ensinou que um cachorro é mais que nosso melhor amigo: que ele se torna um membro da família, com toda a importância e responsabilidade que envolve o familiar. Nós ganhamos companhia e a casa fica divertida com latidos de euforia, como aqueles da hora de pegar a coleira para passear. Ganhamos lambidas no rosto e mordiscadas no calcanhar como demonstrações de gratidão. Aprendemos a ter responsabilidade por quem depende da nossa atenção e cuidados, como quando tem chuva com trovões e a gente se levanta no meio da noite para ver se o cachorro está assustado.

Descobrimos que cachorros são cheios de manias. Kaká gostava de comer seu osso em cima dos nossos chinelos; se não tinha chinelo à vista, ele largava o ossinho. Ele tirava seus cochilos da tarde em cima do tapete da cozinha. Aprendeu a tirar a roupa de frio sozinho (nunca descobrimos como ele fazia isso). E tinha pavor do barulho de rojão.

Há quem opte por não ter um animal de estimação para não sofrer quando ele se for, pois quando nosso cão morre, morre um pouco de nós. Mas por mais difícil que seja esta separação pela morte, vale muito a pena conviver com um cão. Você conhece um amor incondicional: aquele que te espera, pelo tempo que for preciso — até mesmo debaixo de chuva — no portão, todos os dias.

Nosso cachorro lutou bravamente por mais de um ano, desde o diagnóstico. Seu amor por nós nos tornou dignos de cuidar dele. Foram muitas as vezes que ele foi levado ao veterinário, sempre recebendo todo o cuidado que merecia. Quando estava perdendo a fome e a força, ele até mostrava alguns dias de melhora — aqueles dias em que nossa esperança se reacendia e a gente quase esquecia o câncer e as metástases. Acredito que ele queria ficar mais um pouco em nossas vidas e, ao mesmo tempo, estava nos preparando para a sua partida.

Nos seus últimos momentos, sentei-me ao seu lado, acariciei seu pelo e senti seus ossos no corpo emagrecido. Meu pai o tinha acomodado sobre sua manta preferida. Minha mãe limpou seu focinho e sua boca. Estávamos todos na sala de TV, um dos locais da casa onde o Kaká mais gostava de ficar. Seus olhos amendoados, sempre vívidos e alegres, já enxergavam o nada. Enquanto sua respiração ia ficando mais espaçada, coloquei minha mão sobre seu peito e senti o coração desacelerar. Beijei sua cabeça e disse em seu ouvido: “não se preocupe, cão, nós estamos aqui”.

Rebeca Bedone

é médica.