Se a Terra for mesmo plana, que não termine em barranco, mas, em cachoeira, para nos banharmos nela. Atos explícitos de burrice sempre acabam em piada. E eu não vim aqui para fazer graça. A maior parte dos meus sonhos restou atolada pelo caminho, num tempo em que chovia demais, podem acreditar. Tenho idade suficiente para assegurar aos mais novos que, sim, “na minha época” — odeio essa frase — chovia mais do que chove hoje. Chuva que criava enxurrada. Que servia de brinquedo ao arrastar a meninada ladeira abaixo. Que fazia lama nas estradas de terra. Que atolava a camionete do leiteiro. Que encharcava a terra para a criançada se lambuzar de barro. Houve um tempo em que brincávamos com a lama, sem enlouquecer as mães com possibilidades mórbidas. A gente se entendia bem com os microrganismos.
2020: O ano em que faremos contato com a desgraceira. Pandemia do Covid-19. Gente morrendo no atacado. A escumalha no poder, escumando enlouquecida pela boca. As boiadas passando. O espetáculo dantesco do fogo sapecando a flora e a fauna. Os céus irrespiráveis do Brasil. Aquela vontade de cair fora daqui. Não são dias fáceis nem para o capeta. O calor infernal tá de arrancar pica-pau do oco. Os meus olhos lacrimejam. Não sei se é fuligem. Não sei se é dor. Não sei se é só vontade de chorar. A ideia é não perder a esperança, nem a sanidade mental.
Faço planos de arrancar os panos para tomar banho de chuva na primeira oportunidade que tiver. Que se dane a vizinhança. É preciso ser feliz, nem que seja na chuva, despido de qualquer maldade. Enquanto ela não chega, fiz uma enquete entre os amigos e leitores que ainda me restavam nas redes sociais. Pedi que as pessoas citassem canções que enalteciam os predicados da chuva. Recebi inúmeras contribuições. É curioso notar como muitos autores, ao comporem as letras das canções, associam a chuva a um fenômeno triste, melancólico, negativo, muitas vezes, um verdadeiro estorvo. Aqui não. Comigo não. Nunca mais reclamo de chuva, só da falta dela.
Compilei um repertório legal que pretendo compartilhar com vocês. Segue abaixo uma seleção de dez canções brasileiras para trazer de volta a chuva, com os respectivos áudios e alguns trechinhos das letras. Foram ordenadas em ordem aleatória. Ouçam com atenção. Se sentirem alegria e confiança, dancem. Dancem em prol da chuva e da água. Dancem como se fossem índios, os residentes primitivos, os reais donos dessas plagas. Quem sabe, a chuva chega, antes da data prevista pelas moças bonitas do tempo. Todo mundo se engana um dia. Até a moças bonitas do tempo. Até Deus, que fez o homem a sua imagem e semelhança para, dentre outras coisas, amar ou destruir a natureza.
CHUVA NO BREJO (Moraes Moreira) Interpretação — Marisa Monte
Olha como a chuva cai
E molha a folha aqui na telha
Faz um som assim
Um barulhinho bom
Água nova
Vida veio ver-te
Voa passarinho
No teu canto canta
Antiga cantiga
SEGUE O SECO (Carlinhos Brown) — Interpretação: Marisa Monte
Ô chuva vem me dizer
Se posso ir lá em cima pra derramar você
Ó chuva preste atenção
Se o povo lá de cima vive na solidão
Se acabar não acostumando
Se acabar parado e calado
Se acabar baixinho chorando
E se acabar meio abandonado
Pode ser lágrimas de São Pedro
Ou talvez um grande amor chorando
Pode ser o desabotoar do céu
Pode ser um coco derramando
CHOVER, INVOCAÇÃO PARA UM DIA LÍQUIDO (Lirinha & Clayton Barros) — Interpretação: Cordel do Fogo Encantado
Quando chove no sertão
O sol deita e a água rola
O sapo vomita espuma
Onde um boi pisa e se atola
E a fartura esconde o saco
Que a fome pedia esmola
CHUVA (Thalma Neris & Iara Rennó) — Interpretação: Jaloo
Ar quente vai subir
Ar frio vai descer
Vapor que vem do mar
Geleiras vão derreter
O vento vai soprar
Tudo pode acontecer
As nuvens vão se condensar
E depois vão dissolver
Porque quando o sol aquece a terra
Muita água se libera
E a gravidade da atmosfera
Faz pressão que nem panela
ÁGUA (Russo, Roberto Barreto, Bira Marques, Antônio Carlos & Jocafi) — Interpretação: Baiana System
O que é que é
Aluvião que cai em pé
Corre no chão
H2O é ouro em pó
No ponto futuro
O doce e o sal vão se misturar
Tem pé com pé
Tem mão com mão
Tem boca com bô
H2O é ouro em pó, é salvação
TOMARA QUE CHOVA (Romeu Gentil & Paquito) — Interpretação: Emilinha Borba
Tomara que chova
Três dias sem parar
A minha grande mágoa
É lá em casa não ter água
E eu preciso me lavar
MEDO DA CHUVA (Paulo Coelho & Raul Seixas) — Interpretação: Raul Seixas
Eu perdi o meu medo
Meu medo, meu medo da chuva
Pois a chuva voltando pra terra
Traz coisas do ar
Aprendi o segredo, segredo
Segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas
No mesmo lugar
Vendo as pedras que sonham sozinhas
No mesmo lugar
OH! CHUVA (Luís Carlos Xavier) — Interpretação: Falamansa
Você que tem medo de chuva
Você não é nem de papel
Muito menos feito de açúcar
Ou algo parecido com mel
Experimente tomar banho de chuva
E conhecer a energia do céu
A energia dessa água sagrada
Nos abençoa da cabeça aos pés
Chuva eu peço que caia devagar
Só molhe esse povo de alegria
Para nunca mais chorar
DEIXA CHOVER (Rafael Machado & Vinicius de Oliveira) — Interpretação: Chimarruts
Deixa chover deixa
A água lágrima divina vai purificar
Deixa chover deixa
Semente que cair na terra
Já pode brotar
Sem demora vou me embora
Mas eu nem sei pra onde eu vou
Vou perder-me no caminho
Que é bem melhor do que onde estou
Mas um dia Deus vai me abençoar
Trazendo a sua chuva
Para todo o mal lavar
PRIMAVERA, VAI CHUVA (Cassiano & Rochael) —Interpretação: Tim Maia
Quando o inverno chegar
Eu quero estar junto a ti
Pode o outono voltar
Que eu quero estar junto a ti
Eu (é primavera)
Te amo (é primavera)
Te amo (é primavera) meu amor
Trago essa rosa para te dar
Meu amor
Hoje o céu está tão lindo
Vai chuva