Dia desses, um grande amigo que lê meus textos me aconselhou a incursionar por registros mais pessoais, algo mais lírico, que exponha de forma mais evidente as entranhas da minha mente inquieta e perturbada. A ocasião foi regada a uísque e charutos. Não que esses produtos sejam desconhecidos do meu organismo, mas as quantidades industriais me levaram ao médico no final da noite. Veja: isso, por si só, já é uma descuidada revelação.
O assunto me martelou por semanas, até me levar a Charles Bukowski, cuja biografia (de Howard Sounes, que recomendo) me foi presenteada anos atrás, por coincidência, pelo mesmo amigo. Na história do velho safado, como era conhecido Bukowski, eu via quase um espelho. Não que eu seja velho, tampouco safado, mas me identifiquei com seu “blue Bird”:
Há um pássaro azul
em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais
com ele,
eu digo, fique aí,
não deixarei
que ninguém o veja.
O pássaro azul de Bukowski, se eu não estiver muito enganado, se parece com o meu: é o pieguismo. Aquela vontade de acariciar cabeças de bebês ou de filhotes caninos, que fazemos ao borbotões em casa, mas fingimos solene indiferença em público.
É o sentimentalismo: o choro contido no cinema, em cenas como o perdão ao bom ladrão na “Paixão de Cristo”, de Mel Gibson. O buquê de flores reiteradamente negado — ou esquecido — nos aniversários de casamento. A vergonha da taquicardia escancarada nos momentos de emoção.
Há um pássaro azul
em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque
sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes
dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
Meu pássaro azul está com a cabeça encharcada de uísque desde a segunda infância. Seus pulmões inalaram tanta fumaça — real e figurativa — durante a vida que, se alguém o ouvir, será a ressonância de um pigarro sôfrego e renitente.
E ele mora sozinho. Não permito que nenhum colibri lhe faça companhia. Certa vez ele tentou fugir com um rouxinol, mas então eu dei a ele de conhecer sobre o destino dessa espécie de pássaro em um conto de Oscar Wilde. Desde então ele tem se comportado bem.
Há um pássaro azul
em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais
com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
quer foder
com minha escrita?
quer arruinar a venda
dos meus livros
na Europa?
Não sei se já vendi livros na Europa, mas não permitirei que essa ave conte aos meus amigos que eu não posso com meio litro de uísque e charutos Toscano. Ele tem que aprender qual é o seu lugar.
Desolado, arruinado, ele se lembra do destino do rouxinol e às vezes até me ajuda na digestão dos excessos etílicos, na forma de uma dipirona encapsulada, para que ninguém saiba da existência da minha hérnia de hiato. Bom garoto.
Há um pássaro azul
em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto,
deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos
estão dormindo.
eu digo,
sei que você está aí,
então não fique
triste.
Sim, o pássaro azul tem seus momentos. Pode ser que este texto seja enquadrado, mas não é a minha intenção. Volte, passarinho, tranque-se em sua gaiola e durma, me deixe em paz.
Alguns podem confundir essa dureza com uma certa “masculinidade tóxica”. Bobagem. Se é tóxico, é só pra mim mesmo, as pessoas não aprendem a separar as coisas, tampouco que os durões (os tough guys) não têm nada a ver com canalhas que agridem os outros.
Depois o coloco de volta
em seu lugar,
mas ele ainda
canta um pouquinho
lá dentro,
não deixo que morra
completamente
e nós dormimos
juntos assim
com nosso pacto secreto
e isto é bom
o suficiente para
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, e
você?
Chega, meu jovem. Você já deu o seu showzinho por hoje. A gaiola em que você vive não é nenhum Bukowski, tampouco um Wilde. Recolha-se à sua insignificância.