Por ora, os encontros musicais estão adiados. Coisas da nova ordem. Coisas da pandemia. A onda, agora, são as “lives” musicais nos canais da internet, iniciativas para que os profissionais da música se mantenham minimamente ativos e possam garantir o justo e necessário provimento financeiro, além, é claro, de levar entretenimento e alento aos corações aprisionados em casa.
Ontem assisti a dois shows incríveis que movimentaram o Coala Festival 2020, um evento de música brasileira que desde 2014 acontecia no Memorial da América Latina, em São Paulo. Neste ano, por motivos óbvios, o festival teve que se reinventar e ocorreu num local bucólico, em meio à natureza, fora da capital paulista. Primeiramente, no final da tarde, assisti à apresentação dos velhos — e sempre ótimos — Novos Baianos, desta feita, sem a presença de Moraes Moreira, líder-fundador do grupo que morreu há cinco meses, num ano para lá de esquisito.
Como era de se esperar, o show dos baianos foi de altíssimo astral, mesmo sem o Moraes, cujo valor foi reconhecido e festejado pelos colegas da banda. Fiquei particularmente empolgado com a performance de Baby do Brasil, que eu insisto em chamar de Baby Consuelo, a despeito das crendices e da numerologia. Ela continua lépida, graciosa, colorida, carismática e, acima de tudo, dona de uma voz poderosa. Tão boa quanto o vinho.
Mais tarde, foi a vez de Gilberto Gil e dos Gilsons, um grupo musical formado por seus filhos e netos. No auge dos 78 anos, Gil se mantém gentil, suave, competente e otimista. À certa altura do show, cantou sozinho — voz e violão — a belíssima “Se eu quiser falar com Deus”, oração cantada, uma obra-prima comovente até mesmo para os seres descrentes e turrões como eu.
Aproximando-se do final do show, numa fala breve e inusitada, Gil comentou que os seus filhos e netos estavam crescidos, que já não eram mais crianças e que estavam lhe dando descendentes como presente. Emendou a confissão dizendo que as pessoas seguiam povoando, povoando, povoando o mundo, e que aquilo era bom, a melhor coisa que podia acontecer ao mundo: gente.
Fui dormir com aquilo na cabeça: gente. Andava tão desacorçoado com gente, justamente a refletir sobre os fatos dantescos que infernizavam a humanidade: intolerância racial, violência policial, florestas em chamas, corrupção política, a escumalha no poder, pessoas conhecidas ceifadas pela pandemia e a saudade rascante dos reencontros. Aqueles shows foram um alento. A frase poderosa de Gil, um de meus heróis musicais, caiu-me como a uma luva. A carapuça serviu direitinho.
Fiquei um pouco mais animado, com a esperança renovada de que seria preciso relevar as dores do mundo — e elas não eram poucas — para me apegar no que existisse de bom no planeta, como aqueles artistas, que deixaram o meu dia bem menos melancólico. Eu não rezo mais. Eu reflito. Por isso, ando aflito. Eu preciso aprender a ser só. Eu preciso aprender a só ser. Aqueles ensinamentos do Gil, sobre gente, ribombaram na minha cabeça, cálidas e suaves, até eu pegar no sono. No dia seguinte, fui acordado por um sol escandaloso que me invadiu a escuridão, vívido, alegre, cativante, caloroso, como se fosse, ele próprio, o astro-rei, um baiano.