Escapando dos censores, Lev escreveu cartas em que apresentava o gulag como era: um horror. Relatava as doenças, as mortes. Ele dizia que a vida difícil no campo expunha o que as pessoas tinham de pior
O historiador britânico Orlando Figes, ao visitar o Memorial, em Moscou, decidiu examinar o conteúdo de três baús. No menor, descobriu 1246 cartas trocadas entre os jovens Lev Glebovich Mishchenko e Svetlana (Sveta) Alexandrovna, durante oito anos e meio, de 1946 a 1954. Eram cartas de amor. Lev estava em Pechora, um campo de trabalho forçado, no Círculo Ártico, onde cumpria uma pena de dez anos (Menachen Begin [1913-1992], mais tarde primeiro-ministro de Israel, esteve no mesmo campo), sob acusação, falsa, de que havia espionado para os alemães durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Sveta era uma física categorizada, que havia sido colega do Nobel de Física Andréi Sákharov (1921-1989).
Algumas cartas são transcritas no livro e, de tão belas e quase nada lamentosas, comoveram Figes, que, após ler todas e conversar com Lev e Sveta, publicou o livro “Una Palabra Tuya — Amor y Supervivencia en el Gulag” (Edhasa, 442 páginas, tradução de Gregorio Cantera). Em inglês, o título é “Just Send me Word” (“Mande-me Apenas uma Palavra”). Na edição de Barcelona, há um subtítulo na capa, “Amor y Muerte en el Gulag”, e um subtítulo interno, “Amor y Supervivencia en el Gulag” — que, no caso de Lev, é mais apropriado. A obra saiu na Inglaterra em 2012 e em 2015 na Espanha.
Prisioneiro dos alemães
Como os pais foram assassinados pela polícia política de Stálin, Lev foi criado por sua tia Lydia Konstantinovna, que chamava de avó, e outras parentes. Ele nasceu em Moscou, em 21 de janeiro de 1917. Na Universidade de Moscou, onde estudava Física, conheceu Sveta, garota de olhos azuis e inteligente, em 1935. Era filha de um antigo bolchevique, Aleksandr Alexséievich, e de Anastasia Eroféievna, professora de Língua Russa. Lev não era bonito, mas atraía pelos olhos azuis, argúcia intelectual e gentileza. Mais do que amor, deu-se uma amizade à primeira vista.
Na Faculdade de Física de Moscou, considerada a melhor da União Soviética, Lev e Sveta, estudantes exemplares, perceberam que cientistas brilhantes, como Yuri Rumer (expulso da universidade) e Borís Gessen (fuzilado), começaram a ser perseguidos, porque valorizavam as pesquisas de Einstein, Bohr e Heisenberg. Físicos stalinistas eram críticos ferrenhos da Teoria da Relatividade e da mecânica quântica e consideravam seus adeptos como não patriotas e, até, espiões. Integrante do Komsomol, a juventude comunista, Lev chegou a ser acusado de “agitador trotskista”, o que não era, e quase foi expulso da Faculdade de Física. Por ser bom aluno, acabou recebendo a proteção dos colegas. Sveta e Lev liam os melhores poetas russos, como Púchkin, Maiakóvski, Anna Akhmátova e Aleksandr Blok. Sveta apreciava um poema de Eleva Ryvina, que trata de quão breve é a felicidade. “Nosso inesperado encontro é mais breve/que um passo, que um instante, que um suspiro”, assinalam alguns dos versos.
Em 1940, recomendado por Naum Grigorov, Lev começou a trabalhar no Instituto de Física Lébedev (Fian), especializado em física nuclear. No último ano de Física, participava de uma pesquisa sobre radiação cósmica.
Mas em 1941, dada a invasão dos nazistas da Alemanha de Adolf Hitler, a vida dos soviéticos virou de ponta-cabeça. Ióssif Stálin, o ditador, era aliado do führer, os dois haviam assinado um acordo em agosto de 1939, e, apesar de informado de que a Alemanha atacaria a União Soviética, não se precaveu. Lev alistou-se para combater na linha de frente, mas acabou assumindo, como tenente, “uma modesta unidade de intendência”. Sua equipe transportava víveres.
Ao contrário do que dizia a propaganda de Stálin, os soviéticos, inicialmente, levaram uma surra federal dos alemães. Predominava o caos. Aprisionado pelos nazistas, Lev “recebia duzentos gramas de pão por dia”. Centenas de soviéticos morriam de fome, frio e tifo.
Levado para uma prisão nas proximidades de Katyn, Lev passou a receber tratamento um pouco melhor: comia sopa, carne e pão. Os alemães queriam transformar os soviéticos em espiões. Alguns aceitaram; Lev, não. Disse a um capitão alemão: “Sou oficial do Exército soviético, e não posso atuar contra meus próprios camaradas”. Os nazistas estranharam o fato de saber alemão e o pressionaram para revelar se era judeu. Não era e rezou o “Pai Nosso”.
Em 1942, os alemães obrigaram Lev e outros soviéticos a trabalhar numa indústria ligada à fábrica Kopp e Gaberland, em Oschatz, e depois na fábrica Hasag. E foi compelido a prestar serviço como tradutor.
Em 1943, os nazistas criam o Exército Russo de Libertação. Soldados soviéticos, comandados pelo general Andréi Vlásov, foram treinados para atacar as forças de Stálin. Mesmo pressionado, com frequência, Lev se recusou a integrar tal Exército e os alemães chegaram a articular seu fuzilamento, pois avaliavam que estava influenciando outros soviéticos a não lutar contra o Exército Vermelho.
Para sobreviver, Lev decide fugir, para lutar ao lado dos partisans soviéticos, na Bielorrússia, e voltar a Moscou. Ele escapa em junho de 1943, à noite, mas foi recapturado nas proximidades de Görlitz, na fronteira com a Polônia.
Sveta não sabia o que estava ocorrendo com Lev e vice-versa. Em Moscou, dada a “fuga” dos líderes bolcheviques, as pessoas criticavam publicamente os comunistas. Trabalhadores chegaram a enfrentar a polícia. Os estudantes da Universidade de Moscou — como Sveta e Sákharov — foram retirados da cidade.
Ao se formar, Sveta passou a trabalhar no Comissionado Popular encarregado de munições e, depois, no Instituto de Pesquisas Científicas da Indústria da Borracha.
Condenado à morte
Já em 1942, a NKVD, antecessora da KGB, tendo concluído que Lev “espionava” para os alemães, começou a interrogar Sveta e a vigiar sua casa, com o objetivo de flagrá-lo. Tânia, irmã de Sveta que trabalhava como enfermeira na guerra, morreu de apendicite, em Stalingrado.
Para Stálin e seus epígonos, todo soviético que caísse nas mãos dos alemães devia ser considerado “espião”. Ao ser informado que Lev estava desaparecido, Sveta escreveu alguns poemas. Num deles, de 1943, assinala: “Que lembrança levarei de ti? A amarga impressão de um sonho que se desvanece?”.
Depois de passar pelo campo de concentração de Mühlberg, Lev estava num dos mais impiedosos campos de trabalho de Hitler, em Leipzig. Trabalhava na fábrica de munições Pittler. Trabalhadores morriam de tão esgotados. Lev, tido como rebelde, foi submetido a interrogatórios várias vezes e chegou a ser levado para uma prisão em Leipzig, onde, com outros prisioneiros, ocupou uma cela extremamente pequena. De lá, foram levados para Buchenwald. A roupa dos soviéticos era identificada com a letra “R” marcada num triângulo vermelho.
Lev trabalhou na fábrica de munições de Mansfeld e, depois, em Buchenwald-Wansleben, onde os presos montavam motores para aviões da Luftwaffe. Dadas as condições terríveis de trabalho, numa jornada de 11 horas diárias, morriam dezenas de prisioneiros. Os que não suportavam as condições de trabalho eram violentamente agredidos.
Em abril de 1945, quando os Aliados invadiram a Alemanha, os presos-escravos foram obrigados a uma longa caminhada. Os que caíam eram fuzilados pelos integrantes da SS. Lev percebeu que, se não tentasse fugir, seria morto. Mesmo com medo, escapa, com Alekséi Andréiev.
Encontrado pelos soviéticos, Lev se tornou “prisioneiro” da Smersh (acrônimo que significa “Morte aos Espiões!”), unidade especial da NKVD. “Os interrogatórios de Lev duraram mais de um mês. Os investigadores da Smersh o acusaram de haver espionado para os alemães”, anota Figes.
Integrantes da Smersh ameaçaram fuzilar Lev, se não confessasse que era espião. Deram-lhe uma surra. “Não tinha medo de morrer”, disse mais tarde. Mas, dada a pressão, chegou a acreditar que não iria sobreviver e que não veria mais sua amada Sveta. Em setembro de 1945, perdeu as esperanças.
Ao perceber que Lev não confessava que era espião, os agentes da Smersh disseram-lhe que tudo bem, que bastava assinar uma confissão e que a história da “traição” não seria incluída. Esgotado, Lev assinou os papéis nos quais se incriminava exatamente como “espião”.
“Em 19 de novembro de 1945, em Weimar, um tribunal militar formado por três oficiais da Oitava Divisão da Guarda condenou” Lev “à morte por traição à mãe pátria, com base no artigo 58-1 (b) do Código Penal que se aplicava aos soldados soviéticos”. A sentença, quiçá por absurda, foi comutada para dez anos em um campo correcional de trabalho do gulag. O objetivo da pena mais “leve” era criar mão de obra escrava. Ele foi levado para o campo de trabalho de Pechora.
No trem para Pechora, presos comuns agrediam presos políticos. Lev, espancado, teve lesões nos rins e um tímpano rompido.
Epistolário
Em Pechora, no Norte da União Soviética, o inverno ártico durava nove meses. A temperatura chegava a 49 graus abaixo de zero. “Lev foi destinado à exploração de madeira, o principal complexo industrial de Pechora.” A madeira era usada para a construção de móveis. As condições de trabalho eram desumanas e várias pessoas adoeciam e morriam.
Dez mil presos e trabalhadores livres moravam em Pechora, na cidade e na colônia, em casas de madeiras. Na Segunda Colônia, para onde Lev foi deslocado, moravam oitocentos prisioneiros. Liubomir Terletski, Liubka, se tornou seu melhor amigo. Eles se protegiam.
Por que Lev sobreviveu às difíceis condições de trabalho em Pechora? Porque logo deixou o trabalho de exploração de madeira (tiravam troncos do rio — a água era gelada — e levavam para a serraria), ao qual muitos sucumbiam (os turnos de trabalho eram de 12 horas), e, dado seu conhecimento de física, passou a trabalhar como técnico no setor de caldeiras — levado por Georgi Strelkov — e, mais tarde, na central elétrica de Pechora. Na coleta de madeira, o trabalho era tão pesado e a alimentação tão deficiente que parte dos prisioneiros morria ou vivia na enfermaria. Lev ficou três meses no trabalho de colher madeira no rio e estava esgotado. É possível que, se não tivesse ido para a central elétrica, teria morrido.
Com o apoio de Strelkov, Lev pôde escrever cartas. Como havia cinco anos que nada sabia sobre Sveta, decidiu não escrever-lhe. Mandou uma carta para a tia Olga e pediu informações sobre sua paixão. Um mês depois, recebeu a resposta e ficou comovido, sobretudo por saber que Sveta estava bem. Mas, ante o desastre de sua vida no campo de trabalho, disse para a tia: “Deixe que siga com sua vida tranquila, sem pensar em mim”.
Sveta, em 1946, “havia perdido toda a esperança de voltar a ver Lev”. Acreditava que estava morto. Ficou desesperada. Ao saber que estava vivo, por meio de Olga, escreveu-lhe a primeira carta, em 12 de julho de 1946: “Nós dois temos 29 anos, nos conhecemos há 11 e não nos vemos há cinco anos”. Ela diz que pretende vê-lo e não quer esperar mais cinco anos. É uma bela e longa carta, acompanhada de uma fotografia. Lev recebeu-a quase um mês depois. Era uma noite branca no Ártico e ele não dormiu, lendo a carta o tempo inteiro. Às 5h30 da manhã começou a respondê-la, quase em transe. Ele diz que a caligrafia de Sveta parecia dotada de vida — “que carta!” — e contou sua história desditosa. “Me pergunta se há alguma possibilidade de que possamos nos ver… Sveta, é praticamente impossível.” Explica que aceita receber livros, que ela havia prometido. “Recorda de Akhmátova e de Blok? Lembro muito de Púchkin e de sua composição favorita, ‘O Convidado de Pedra’.” Fala de “La Traviata”. “Não me envie nada mais que cartas, cartas e mais cartas!”
O stalinismo era rigoroso e a censura rígida? Como Lev, de um campo de trabalho escravo, conseguia enviar cartas para Moscou e como uma física que participava de uma pesquisa secreta podia respondê-las? As cartas não foram censuradas, espanta-se Figes. “Graças a trabalhadores voluntários e funcionários que”, quiçá comovidos com o amor de Lev e Sveta, “se empenharam para fazê-las entrar e sair do campo furtivamente”. Havia, por assim dizer, um complô do bem.
Os presos de Pechora podiam receber uma carta por mês, “convenientemente censurada”. As cartas de Lev e Sveta escaparam à censura. Mas o MVD sabia que alguma coisa estava acontecendo.
Nas cartas, Lev só pedia papel e caneta para si. Para os amigos de gulag, solicita medicamentos e, às vezes, roupas. Sveta envia alimentos e livros. Figes nota que as cartas não falam só de amor. Lev conta como era a vida em Pechora — duríssima — e Sveta fala das dificuldades em Moscou, com suas muitas filas para comprar alimentos (quase sempre em falta). As cartas são, portanto, um retrato de seu tempo.
Numa carta, Lev conta que “fala” com Sveta “ao menos dezesseis das 24 horas do dia”. Às vezes, com receio de serem flagrados, “falavam” nas linhas e nas entrelinhas. Vitamina D era suborno. Para falar do absurdo da situação mencionavam a obra de Nikolái Gógol. Ele tinha medo que, devido às cartas, Sveta fosse envolvida em alguma confusão. Uma alta funcionária do governo não podia manter contato com preso político. Só dois colegas de trabalho, Bella Lipkina e Mikhail Tsydzik (seu chefe), sabiam do relacionamento de Sveta e Lev.
Embora sensíveis, as cartas de Lev e Sveta não são, no geral, românticas. O romantismo estava no próprio ato de escrever e enviá-las, no carinho que nutriam um pelo outro. “Graças às cartas, [Sveta] vivia para Lev.” Por intermédio de poemas, como um de Sasha Chorny, “Para o paciente” (enviado por Sveta), celebram o amor: “Nada espere em troca: tal é a chave que abre os corações”. Às vezes, Sveta descrevia “minuciosamente a roupa que estava usando para que Lev parecesse tê-la ao seu lado”.
Numa de suas cartas mais comoventes, Lev diz a Sveta que havia chegado a pensar se sua vida ainda poderia preocupar alguém. Por isso, ao receber as cartas de sua namorada, percebia “cada palavra como uma ressurreição”. Habilmente, Sveta pôs amigos em contato com Lev. “Era o amor de Sveta que lhe dava forças para seguir adiante. Vivia graças às suas cartas.” “Suas duas cartas são minha biblioteca”, escreve Lev ao receber as primeiras cartas.
Antes de dormir, Lev lia as cartas e cobria o rosto para que os companheiros de infortúnio não percebessem que estavam sorrindo, meio bobo, de felicidade. Poderiam achar que estava louco. Sveta queria exatamente isto: que se sentisse amado. “Você é minha vida, e não passa um dia sem que eu te tenha presente de manhã, à tarde e à noite”, escreveu Sveta. Noutra carta, assinala, citando a poeta russa Vera Inber: “Por que tudo, quando só se precisa de uma coisa?” Apaixonada, e sabendo-se amada, acrescentou: “O coração pode mais que a cabeça”. Lev e Sveta sabiam que o amor estava salvando a vida de ambos. Ela era profundamente depressiva e a luta por Lev ajudou a restaurar sua saúde. “Creio em nosso futuro. A única coisa que me importa é ficarmos juntos.”
Sveta registra para Lev que, numa conversa, suas amigas disseram que ela era a mais feliz. E era verdade. Amava e se sentia amada. “Só preciso ver que está ao meu lado quando acordo pela manhã e que, ao cair da noite, poderei contar tudo o que se passou durante o dia, olhando nos seus olhos e me abraçando.” O que era impossível no momento parecia certo no futuro. Ao ler isto, Lev, um homem condenado a dez anos de prisão, como que despertava e “revivia”. Ele, que quase não dormia, de tão feliz, julgava-se “salvo”. Nada poderia derrubá-lo. Ao mesmo tempo, quedava-se envergonhado, pois não queria ser um peso para Sveta, que enviava pacotes com vários produtos para ele e amigos. Lev não tinha um centavo no bolso e afirma que, aos 30 anos, parecia uma criança, por ser sustentado. Para não deixá-la triste, ou com pena dele, não revelava certos problemas do campo de trabalho, e não reclamava nem mesmo do frio, da fome e do tratamento violento tanto dos guardas quanto dos presos comuns. Às vezes fala da beleza do céu, da aurora boreal. Mas lamenta o fato de que estão ficando velhos e, sobretudo, distantes um do outro. Ao responder que a velhice de ambos não importa, Sveta acrescenta: “Gostaria de preservar a juventude e a beleza como um presente para ti”.
Uma boa notícia é dada a Sveta. Lev relata que foi transferido para a central elétrica da exploração madeireira. Era um trabalho mais leve. O preso Nikolái Lileyev, seu amigo, ajuda-o a obter o cargo. Era uma espécie de “promoção” e Lev pôde ver filmes, escutar rádio e, se quisesse, comprar vodka e tabaco.
Lev compartilha as informações que Sveta enviava de Moscou. Mas não fala dela com os amigos. “Não posso compartilhar com ninguém — é minha!”
Quando demorava a chegar carta de Sveta, nos períodos mais frios, Lev lamentava: “Sveta, me afogo em um oceano de desespero e não sei como voltar à superfície; não tenho recebido nenhuma carta. Tudo o que desejo são mais cartas”. Ela responde e fala que comprou um livro de “Poesia Clássica” e menciona um poema de Alekséi Tolstói, o qual se diz: “Não me pergunte como cheguei a lhe querer”.
Segundo Figes, em 1946, na exploração madeireira, “haviam 445 trabalhadores livres que viviam, com suas respectivas famílias, em lugares diferentes: alguns no interior do campo, onde, a um passo da central elétrica, havia uma colônia de casas para eles; outros viviam fora do campo, e iam para seus trabalhos todos os dias. Suas condições de vida não eram muito melhores que as dos presos. (…) Muitos eram os trabalhadores livres que ajudavam os presos a enviaram cartas clandestinamente, em troca de dinheiro ou de alguma compensação material, mas, na maioria das vezes, por amizade ou solidariedade”. Eles levavam as cartas escondidas nas roupas. O MVD tentou mas não conseguiu bloquear a correspondência. Vários trabalhadores livres ajudaram Lev a enviar e a receber cartas de Sveta. O judeu Lev Izrailevich foi um dos que mais colaboraram no envio das missivas. Ele chegava a fazer fotografias dos presos. Sveta “pagava-lhe” enviando material para as fotos. Ficou feliz ao receber uma foto de Lev. Os trabalhadores livres Aleksandr Aleksándrovski e Stanislav Yajovich também contribuíram para tornar o “correio” eficiente. Escapando dos censores, Lev escreveu cartas em que apresentava o gulag como era: um horror. Relatava as doenças, as mortes. Ele dizia que a vida difícil no campo expunha o que as pessoas tinham de pior.
A partir de determinado período, Lev ficou com receio de que fosse transferido para um lugar ainda pior do que Pechora. “Outra coisa que aterrava a Lev era a possibilidade de cair doente.” Sveta pergunta-lhe sobre a possibilidade de revisão de sua pena. Ele responde: “Não é possível mudar os termos de uma condenação”. Ante o desânimo de Lev, Sveta repreende-o: “Talvez esteja equivocada, mas acaso não é certo que, ao longo desses cinco anos, tem sido mais fácil viver com esperança e sonhos que sem eles?”
Sveta em Pechora
Sveta, voluntariosa, decide visitar Lev em Pechora, que estava a 2170 quilômetros de Moscou. Ele desanimava-a, até porque não era sua mulher nem parente. “Estava tão desanimado, tão empenhado em dissuadir Sveta que quase parecia que tinha medo da ideia de vê-la.” Mas ela não desistia. Sabia que o encontro, se acontecesse, seria apenas por alguns minutos. Mesmo assim, estava disposta à aventura.
Ao saber que Natalia Arkadievna havia visitado o filho Gleb Vasiliev e pretendia fazer uma segunda viagem, Sveta tornou-se ainda mais decidida. Escreveu para Lev: “Tenho a sensação de estar vivendo fora deste mundo, como se me mantivesse à espera de que minha vida comece, como se fosse um parêntese”. Ela admite que tem “medo de que o amor não seja suficiente” e acrescenta: “Preciso de você como ponto de apoio. Temos que sair disso juntos, tomados pelo braço”. Em seguida, sublinha: “Você e eu somos mais felizes que muitas outras pessoas, mais felizes que todos os que não sabem o que é o amor, e mais que aqueles que não sabem como encontrá-lo”. Na carta, revela, sem mencionar a palavra, que tem depressão.
Ao planejar a viagem, Sveta desistiu de pedir autorização ao MVD. Pechora era “um assentamento secreto do gulag que nem sequer figurava nos mapas”.
No esquema montado, ela iria para Kirov e, de lá, para Kotlas e até Kozhva, sempre de trem, onde seria buscada por Lev Izrailevich. Ela avisou Lev que levaria dinheiro para subornos. Aos 30 anos, saiu de Moscou “pouco depois de 20 de setembro” de 1946. Sozinha.
Lev e Sveta passaram duas noites juntos. Na primeira noite, não dormiram, de tão emocionados que estavam. “Beijamos e nos abraçamos até nos fartar-nos. Não direi nada mais sobre aquele momento”, contou Lev a Figes. Mas sugeriu que foram além dos abraços e beijos. Em Pechora, todos queriam conhecer a jovem destemida que enfrentou tudo, nada temendo, para encontrar-se com o homem que amava. Em seguida, uma pessoa levou-a à estação de trem e ela voltou a Moscou. Lev Izrailevich fez fotos de Sveta para Lev. Logo ela escreveu para o amado: “Tudo segue parecendo um sonho”.
A visita de Sveta alegrou Lev. Mas sua partida deixou-o “mais triste do que estava antes”. O mesmo aconteceu com Sveta. Mas, de algum modo, ela ficou mais forte depois do encontro, apesar da depressão. Numa carta, Lev disse que algumas pessoas não sabem valorizar o que têm e que é raro que percebam o quão felizes são. “Dou graças ao destino e a natureza, a você e a mim, por termos percebido como somos felizes”. Dois anos depois, Sveta disse que não sentiu medo, “porque estava preparada para um fracasso”. Mas admitiu que ficou surpresa com sua extrema audácia. “Foi uma loucura.”
Sveta queria ter filhos, pois, aos 30 anos, sabia que o tempo estava passando. “Depois da viagem a Pechora, estava segura de que seu futuro — seu ‘tudo’ — era inseparável de Lev. Porém decidiram que não teriam um filho enquanto Lev continuasse preso”, escreve Figes.
Em Pechora, embora ninguém o obrigasse, Lev esforçava-se para melhorar o funcionamento da central elétrica. “Em 1º de maio de 1948”, o governo “introduziu um novo sistema de comutação de penas na exploração madeireira para as ‘ocupações auxiliares’ (entre as quais figurava a central elétrica).” Quem produzisse mais teria a pena reduzida. O governo estava preocupado com as fugas e revoltas de presos. Mas Lev era um preso político e, sobretudo, um “traidor” da pátria — o que dificultava a redução da pena.
Certa feita, quando Sveta se preparava para uma segunda visita, Lev aconselhou-a a destruir uma carta. Ela não o fez. “Suas cartas eram seu bem mais precioso, e a guardou com as outras.” Dessa vez, ela estava com receio de ir até a Pechora, e Lev alertara que o governo stalinista havia restringido os contatos entre trabalhadores livres e presos.
Dadas as novas medidas de segurança, Lev aconselha a Sveta a não visitá-lo, o que a deixa irritada. Ela viaja e, ao chegar na região, é recebida por Borís Arvanitopulo, chefe e amigo de Lev. Desta vez, ao chegar ao campo, pede autorização para visitá-lo. Eles ficam mais tempo juntos do que esperavam. “Um tempo que, no entanto, não deixava de parecer demasiado breve.”
Sveta escreve que a viagem a tornara ainda mais feliz. Lev confidenciou que pensava nela todo o tempo e disse que, apesar de ter 32 anos, agia como um menino de 16 anos.
Quando Liubka Terletski foi transferido para um campo mais ao norte, ainda pior do que Pechora, Lev ficou aterrado. “Para sobreviver no gulag era preciso ter amigos, e Lev considera Liubka como seu amigo de verdade no campo.”
Em 1949, devido à campanha anticosmopolita, cientistas, como Vitali Epshtein e Lazar Vinistski, companheiros de Sveta, tiveram de sair de Moscou. Cientistas soviéticos de ascendência judaica foram expulsos dos institutos de pesquisa. Ela estava tensa, adoentada.
De longe, Lev ampara-a, às vezes citando o “Prelúdio a um poema sobre o Plano Quinquenal”, o último poema de Maiakóvski. Os dois sonhavam um com o outro com frequência. “Lev parecia vê-la todas as horas. Enquanto estava trabalhando, muitas vezes se surpreendia pensando nela e mantendo conversações com ela em sua cabeça. Até se irrita quando seus companheiros de trabalho lhe dirigem a palavra, interrompendo suas ‘conversações privadas’.” Arredio, enquanto os amigos jogam ou bebem, lê o romance “Anna Kariênina”, de Liev Tolstói
Em 1949, sob um inverno pesado, faltaram alimentos, roupas, calçados e luvas para os presos. Muitos trabalhadores ficaram doentes. Um decreto do MVD tratou de isolar ainda mais os presos. Havia corrupção e alguns presos subornavam funcionários para obter documentos e sair do gulag. O governo de Stálin passa a controlar com mais rigor o sistema de visitas, que seriam limitadas a 30 minutos e duas horas. Lev avisou Sveta, mas ela não estava disposta a aceitar as regras dos comunistas. A saída era subornar os guardas com vodka (“vitamina C”) e dinheiro (“vitamina D”) para conseguir um encontro de três horas. Contrariando o ceticismo de Lev, Sveta disse-lhe que “três horas são melhores do que nada”.
Distensão no gulag
Na terceira visita, Sveta ficou na casa de Borís Arvanitopulo e Vera. “Passou menos tempo com Lev, provavelmente não mais de duas horas e na presença de guardas, na guarita principal.” Mesmo assim, os dois ficaram felizes. A viagem, um perímetro de 4340 quilômetros entre ida e volta, de trem, não a havia deixado contrafeita.
Numa carta, Lev diz que, quando lhe passava alguma coisa agradável pela cabeça, como uma poesia de Púchkin ou de Burns, lembra-se de Sveta. “Via” o seu rosto e seu sorriso. Começou a vê-la em sonhos. Lev leu “Ninho de Nobres”, de Ivan Turguêniev, sobre um amor “contrariado pelas circunstâncias e pelo caráter fugaz”. Disse numa carta: “Compreendi que não há nada mais terrível na vida que o desespero absoluto. (…) A perda de toda a esperança é a paralisia, para não dizer a morte, da alma. Enquanto tivermos forças para seguir esperando, esperemos, Sveta”.
No início de 1950, Lev estava preocupado em sobreviver ao frio (de 47 a 49 graus abaixo de zero). Ele comemorava quando chegava a 36 graus abaixo de zero. Em todo o gulag estavam presas 2.561.351 pessoas. “Um milhão a mais do que em 1945.”
Lev não tinha mais ilusões quanto ao comunismo e a justiça de Stálin. Mas “seguia acreditando na força progressista da ciência e da tecnologia soviéticas”. Para aumentar a produção e melhorar a produtividade, o gulag começou a pagar salários aos presos. Lev ficou contente “com a ideia de ganhar algum dinheiro” e chegou a mandar parte do que ganhou para suas tias Olga e Katia (tuberculosa). O governo também permitiu que os presos cultivassem verduras e Lev e seus companheiros organizaram uma plantação numa área coletiva e até criaram coelhos. Foram construídos barracões mais espaçosos para os prisioneiros. Instalaram uma biblioteca e espaço para dominó e cartas, e permitiram que os detentos ouvissem programação de rádios nacionais. Abriram um posto do correio e um pequeno comércio que vendia manteiga, salshicha, açúcar, vodka, tabaco e tecidos. Inauguraram um Palácio da Cultura e os presos puderam assistir filmes e ouvir música. Os presos puderam jogar futebol ao lado dos trabalhadores livres. A ideia do governo era que deveriam ser reeducados e, ao mesmo tempo, o gulag precisava ser mais produtivo.
Sveta comprou uma máquina fotográfica e passou enviar fotografias para Lev, que lhe escreveu: “Graças às fotos, me sinto quase ao teu lado”. Em Pechora, o governo de Stálin permitiu a construção de uma Casa de Encontros para os presos receberem suas visitas. A casa tinha uma cama, uma mesa, cadeiras e uma pequena cozinha. O mais importante é que a privacidade era respeitada, pois nenhum guarda ficava mais a vigiar. Na sua quarta visita, Sveta ficou três dias com Lev na casa. Lev não a deixou um só instante. “Foram dias maravilhosos”, disseram. “Agora só tenho um propósito: esperá-lo”, escreveu Sveta. “Sem você, não poderia ir a lugar algum.” Lev respondeu: “O mundo é maravilhoso, Svet, mas muito mais quando é você que o ilumina, tanto que não queria vê-lo senão debaixo de sua luz”. Ele diz que a “abnegação” de Sveta era “infinita”.
Em 1951 por uma série de fatores, como o relacionamento entre presos e funcionários, a corrupção e o consumo maciço de vodka, “a segurança do campo começou a desmoronar-se”. Vários presos fugiram. Na Segunda Colônia, onde morava Lev, os guardas desbarataram uma intentona de 40 presos que planejavam fugir do campo. Paranoicos, os comunistas associaram as revoltas ao incentivo da guerra fria, a respeito da qual, no gulag, quase nada se sabia.
Sveta acreditava no socialismo? Acreditava e era filiada ao Partido Comunista. Mas sabia que as grandes obras do comunismo haviam sido feitas com mão de obra escrava, como a de seu amado Lev. Em 1951, Sveta volta a Pechora pela quinta vez. Se encontraram, mas, de novo, as regras haviam endurecido no campo.
Mesmo deprimida, Sveta mantém a correspondência. “Você é um bom homem, Levi”, escreve. Em 1952, no seu sexto inverno em Pechora, Lev enfrenta os rigores do frio. Muitos presos ficaram doentes. Criado só por mulheres, Lev as respeitava muito.
Em 1952, com a liberação de vários presos, a população carcerária começou a diminuir. O gulag estava se esvaziando. Os antigos presos, mesmo livres, eram proibidos de morar nas grandes cidades da União Soviética. Nesse ano, Sveta não foi visitá-lo, pois sua mãe estava doente.
Pechora entrou em declínio. “Devido à escassez de matéria-prima, a rentabilidade da exploração madeireira havia caído”, o que levou à redução tanto de trabalhadores quanto de dirigentes. “Em 1953, a manutenção dos campos de trabalhos forçados custava ao MVD o dobro do que recebia deles. Mas Stálin era um firme defensor do sistema do gulag.” Em Pechora, presos que não estavam recebendo salários se recusavam a trabalhar. E alguns deles tentavam fugir.
Ao ficar sem receber cartas por três semanas, Lev foi tomado pelo pânico. Ele estava apavorado, com receio de que Sveta pudesse abandoná-lo. Logo ela escreveu para tranquilizá-lo.
Morte de Stálin
Stálin sofreu um derrame cerebral e morreu em 5 de março de 1953. “Os únicos lugares onde a notícia da morte de Stálin foi recebida com alvoroço foram nas colônias e nos campos de trabalho. Pode se dizer que a notícia do falecimento de Stálin foi acolhida com certa satisfação. ‘Ninguém chorou pela morte de Stálin’, recordava Lev. Os presos não tinham nenhuma dúvida de que o líder comunista era o responsável por sua desgraça”, frisa Figes. Presos com condenações inferiores a cinco anos, condenados por delitos econômicos, homens com mais de 55 anos e mulheres com mais de 50 anos, assim como pessoas com doenças incuráveis, foram anistiados pelo governo em 27 de março de 1953. Quase 1 milhão de pessoas saiu do gulag. “Na exploração madeireira, a anistia reduziu à metade (de 1623 a 627) as cifras da população reclusa, delinquentes na sua maioria, que se dedicaram à pilhagem, a estuprar mulheres e a semear o terror na cidade de Pechora”, registra Figes.
Muitos presos, com dificuldades para encontrar trabalho, pois era malvistos, voltam aos campos de trabalho. Lev, assustado com a possibilidade de não ser libertado, começou a ter pesadelos. Tinha horror à possibilidade de não voltar a conviver com Svera, “sua única esperança”.
Liberdade
O governo de Nikita Kruchev libertou Lev em 17 de julho de 1954. Ele trabalhou em Pechora durante oito anos e quatro meses. Sua pena foi reduzida dado ao seu trabalho na central elétrica. Ele deixou o campo com duas maletas de madeira, onde estavam todos os seus pertences — quase nada. Viajou para Moscou, contrariando as ordens do MVD, e bateu à porta da casa de Sveta, que estava num centro de recuperação com seu pai, que havia sofrido um AVC. Há 13 anos que não visitava a casa de sua amada.
Sveta havia dito que, quando encontrasse com Lev pela primeira vez, com ele livre, gostaria que fosse um encontro só dos dois. Não deu pé. Eles se encontraram na presença do pai da jovem. Aleksandr, o pai de Sveta, deu um beijo em Lev e disse que tinha 30 mil rublos guardados, uma poupança, e que era para ambos utilizá-los para comprar uma casa.
Lev começa a procurar trabalho, mas ninguém queria empregá-lo. Nos seus documentos havia o registro de que era ex-preso político e, por isso, todos diziam o mesmo: “Não precisamos de ninguém”. Durante três meses, anda por vários lugares, sempre se oferecendo para trabalhar, mas era sempre rejeitado. Serguéi Rzhekvin, ex-professor da Universidade de Moscou, arranja-lhe um trabalho de tradutor do alemão na revista “Physics”. Fazia as traduções e Rzhekvin as assinava. Lev também escrevia resenhas de livros. Embora não pudesse morar em Moscou, passava a maior parte do tempo na casa de Sveta.
“Em 17 de setembro de 1955, Lev recebeu boas notícias. O governo decretou uma anistia para os soldados soviéticos que haviam colaborado com os alemães durante a guerra”, anota Figes. Liberado para viver em Moscou, Lev casou-se com Sveta em 27 de setembro de 1955. Eles estavam com 38 anos e tiveram dois filhos — Anastasia e Nikita.
Lev conseguiu um trabalho de engenheiro numa fábrica de instrumentos científicos. Exigia-se um engenheiro com experiência como físico.
Em 2008, Figes voltou a Moscou para conversar com Lev e Svetlana. Foi recebido por um homem ainda forte e lúcido, aos 91 anos. Era Lev, que disse que iria chamar Svetlana Alexandrovna. Figes estranhou que ele a chamasse assim, de maneira formal, mas entendeu que tinha veneração pela mulher que salvara sua vida. Pouco depois, Lev apareceu com Sveta, que estava numa cadeira de rodas (“uma lesão no coração e uma sucessão de pequenos derrames cerebrais a havia deixado paralítica”).
Sveta havia se aposentado do Instituto de Física em 1972. Lev, que havia voltado a atuar no mundo da física, convidado pelo físico Naum Grigorov, trabalhou no Laboratório para o estudo da Radiação Cósmica durante 34 anos. Figes perguntou por qual motivo Sveta havia se enamorado de Lev. “Desde o início, supus que era meu futuro. Quando não estava, o invocava e sempre acabava por aparecer ao meu lado. Isso era o amor”, disse a brilhante física.
Lev e Sveta permaneceram apaixonados, encantados um com o outro. Lev morreu em 18 de julho de 2008, aos 91 anos. Sveta faleceu em 2 de janeiro de 2010
Este texto, mais do que uma resenha, é uma síntese pálida do livro. O forte da obra são as cartas, que, claro, não foram transcritas, exceto episodicamente. A pesquisa de Figes é uma obra de história, mas não deixa de ser um notável romance epistolar.