Pelo menos uma vez na vida, sê patriota. É dessa droga de amor à pátria que eu estou falando. A nação anda viciada em mau gosto, o que não deixa de ter valor histórico, pois, ficará registrado nos livros, se é que alguém ainda se interessará em literatura. Aliás, doa os livros dos teus pais para abastecer as fogueiras santas. Vamos queimar tudo o que fizer um sujeito pensar, a começar pela obra antiquada de Erasmo de Rotterdam.
Pede-se, por obséquio, que os supermercadistas baixem, imediatamente, os preços dos itens da cesta básica, porque o povão, basicamente, já arreou as calças. E gente com fome, tu bem o sabes, fica revoltada, raivosa, inquisidora dos seus direitos. Tens deveres para com a nação, criatura. Sê um patriota. De gente idiota, as academias de ciências andam lotadas. Vacina na testa. Deves estar de brincadeira. Luta como um homem pelo extermínio da humanidade que ainda te resta. Reza ajoelhado sobre o pescoço da liberdade até que ela pare de respirar e de exprimir opinião própria. Faz jejum até Deus confessar que é brasileiro. A ideia é tocar o terror onde antes se tocava o “Brasileirinho”.
Sê vulgar, mas, antes de tudo, sê também um patriota. Vem te batizar na lama colossal do Tietê, um rio onde merda não afunda. Portanto, não te apoquentes. Lugar em que a tietagem abunda é nos arredores palacianos, aplaudindo piadas grotescas, falácias rotundas, criativas, em prol da ruína da sensatez. Bandido bom é bandido eleito. Isso é o que eu chamo de campanha bem-sucedida. Tu não fazes ideia do nível de organização de um Estado: a Inteligência, por exemplo, numa demonstração de patriotismo inveterado, organizou uma lista de novos inimigos da nação, a começar pelo próprio Cristo, esse comunista, que chutava vendilhões de almas nos pregões da bolsa de valores.
É indispensável fazer cair o preço dos pregos. Vamos crucificar os ideais republicanos em cruzes feitas com madeira-de-dar-em-doido. Vamos empalar a velha democracia até ela admitir que é pior do que a pior das ditaduras. Isso a história não conta: que a histeria coletiva elegeu a nós — os malvados — uma inédita malta de representantes do povo. Que pousem sobre o corpo putrefato da cidadania, os carcarás de apetite totalitarista, que vão devorar os nacos tristonhos dos corações que viraram carniça. A esperança já morreu, mas, se esqueceu de cair. O país precisa de gente como tu, cidadão de bem, conservador dos costumes, seja vivo, seja morto, tanto faz — E daí? — desde que as ações da indústria armamentista estejam em alta no mercado financeiro.
Proponho o seguinte encaminhamento: primeiro, vamos descontruir tudo, a começar pela cultura de um povo, essa coisa demoníaca que empodera as pessoas; depois, edificaremos o caos. Vige um alvissareiro projeto mundial de dominação e iniquidade, do qual o país não pode se dar ao lixo de ficar fora. Sê parte disso, irmão. Sê um patriota arrogante. Solta foguetes. Lambe as botas do autoritarismo. Atira na liberdade de ir e vir, pelas costas, como se ela fosse um homem preto fugindo das garras da polícia. Ao final de tudo, deitado em berço esplêndido, homem livre, crentíssimo, rancoroso, dorme com a consciência tranquila por ter contribuído, nem que fosse com o teu silêncio, pelo passado da nação. Para trás é que se anda, irmãozinho. Se tu não tivesses entrado nessa onda reacionária, se não tivesses queimado todos aqueles livros de que falei, saberias, com algum grau de antecedência, que não verias país nenhum.