Nolan transformou Batman em um covarde que envergonharia seus pais

Nolan transformou Batman em um covarde que envergonharia seus pais

Qual ator encarnou a versão definitiva do Super-Homem nos cinemas? Obviamente, o imortal Christopher Reeve. Existiram outros intérpretes, antes e depois, mas nenhum deles foi digno de engraxar suas botas vermelhas. Apenas Robert Downey Jr. interpretou o Homem de Ferro, mas já podemos dar como certo que ele é o próprio Tony Stark. A mesma honra pode ser estendida ao aristocrático Pantera Negra de Chadwick Boseman. O filme no qual Arnold Schwarzenegger interpretou Conan é tão extraordinário que minimizou as deficiências técnicas de sua atuação, tornando-a inesquecível. Apesar de alguns questionamentos ao trabalho de Tobey Maguire, vai ser difícil tirar sua coroa de Homem-Aranha canônico.

Por outro lado, apesar da nítida evolução filme a filme, falta alguma coisa no Capitão América de Chris Evans. O mesmo para a Mulher Maravilha de Gal Gadot e o Thor de Chris Hemsworth. Hulk muda mais do que James Bond, sem nenhum ser equivalente a Sean Connery. O Wolverine de Hugh Jackman foi histórico, mas atrapalhou sua adaptação de baixinho animalesco para galã alto e cheio de bons sentimentos; acredito que ainda veremos uma versão mais fiel.

Mas vamos parar de enrolar e tratar do que interessa. Existe uma versão definitiva, uma versão canônica, uma versão impecável de Batman? Infelizmente, a resposta é um sonoro não. Lewis Wilson e Robert Lowery, respectivamente protagonistas das cine-séries de 1943 e 1949, não contam. São curiosidades arqueológicas.

A atuação de Adam West, na série televisiva que foi ao ar entre 1966 e 1968, é emblemática. Nunca existiu um “Cruzado de Capa” tão divertido e canastrão. Mas trata-se de uma sátira. Por melhor que seja, uma sátira não pode ser a versão canônica de nenhum personagem. A lógica da sátira é a desconstrução de uma mitologia pretensamente “séria”. Os produtores do programa consideravam ridículo um homem se vestir de morcego para combater o crime. Errado não estavam. Deram permissão para Adam West extrapolar. Ele chacoalhou sensualmente sua pança heroica numa iluminada pista de dança, mexendo os dedinhos na frente dos olhos, e criou um ícone que marcou gerações. 

Muitos esperavam uma adaptação da colorida série da década de 1960 quando estreou o filme “Batman” (1989), dirigido por um jovem e ainda criativo Tim Burton. Receberam o gótico suave que se tornou marca registrada do diretor. Na prática, o resultado é mais um “filme de Tim Burton” do que um filme do Batman, em todo que isso implica de negativo e de positivo. A empreitava foi comercialmente muito bem-sucedida, artisticamente nem tanto. A fotografia é ótima e o design de produção marcante, mas a direção é pesada e o roteiro apresenta problemas evidentes de ritmo e de conceitos. Tim Burton, que admitiu não gostar de quadrinhos, jamais procurou entender o personagem. Cometeu uma heresia: seu Batman mata. Inclusive o próprio Coringa.  

O maior problema está justamente na escalação da dupla de antagonistas. Vamos falar a verdade, o “rei está nu”, o Coringa de Jack Nicholson é apenas o bom e velho Jack pintado de branco, repetindo seus maneirismos de “O Iluminado” e “O Estranho no Ninho”. Impressiona os mais ingênuos porque Jack é sempre Jack. Tim Burton deveria ter escalado Willem Dafoe, que tinha a idade certa, o tipo físico ideal, o ar psicótico perfeito. Não atuaria no piloto-automático, deixando tudo para a maquiagem, como confessou Jack. Em todo caso, pelo menos o Coringa de Jack Nicholson é funcional. É uma espécie de César Romero sob efeito de pó.

O verdadeiro problema é Batman. Batman, não, Bruce Wayne. Parece que Tim Burton queria trabalhar novamente com os membros masculinos do elenco de “Os Fantasmas se Divertem”. Por isso escalou Michael Keaton para ser o protagonista. Errou. O Bruce Wayne de Michael Keaton não convence em momento algum. Não convence fisicamente: é baixo, é ligeiramente calvo, não está em forma, parece um tiozinho fazendo cosplay. Não convence na essência. Têm uma ou duas cenas razoáveis saindo das sombras, e só. De resto, é um paspalho. Simples assim. Bruce Wayne finge ser um playboy irresponsável. O Bruce Wayne de Michael Keaton é um idiota mesmo quando está sozinho. Ao mesmo tempo, seu Batman é um robô que mal consegue se mexer, mas isso é menos culpa dele do que da opção de figurino.

Apesar de mal escalado, ao longo das décadas, Michael Keaton provou ser um bom ator. Talvez por isso tem-se a tendência a minimizar essa performance ruim. Dizer que não foi tão mal assim, que era condizente com o período e coisas do tipo. Pura vista grossa. Sua escalação foi criticada na época e nunca se justificou. Tim Burton afirmou que escolheu Michael Keaton justamente por ele parecer uma pessoa comum, não um super-herói. Sua ambição egocêntrica de ser “artístico” e “autoral”, de não fazer o óbvio, de quebrar as expectativas dos fãs, induziram-no ao erro. Na primeira superprodução focada em um personagem não é hora de inventar, de ser vanguarda ou de desconstruir. É o momento de fazer escolhas seguras, como fez Richard Donner com o “Super-Homem” de 1978.  

Tim Burton deveria ter escolhido Alec Baldwin, outro ator de “Os Fantasmas se Divertem”. Sua persona, tom e aparência eram ideais para o papel. Alec Baldwin poderia ser para o Batman o que Christopher Reeve foi para o Super-Homem. Sua personificação definitiva e canônica. Fora do papel, só restou para Alec Baldwin ser uma “sombra” do que poderia ter sido.

O equivocado Michael Keaton ainda interpretou o herói na continuação, “Batman, o Retorno” (1992). Novamente, foi o ponto fraco do elenco, dominado por Michelle Pfeiffer, Danny DeVito e Christopher Walken. Saiu junto com Tim Burton e não participou do terceiro episódio da franquia, “Batman Eternamente” (1995). Joel Schumacher, o novo diretor, optou por Val Kilmer para substituí-lo. Mais alto, mais jovem e mais atlético, porém louro. Bruce Wayne não é louro. Isso é ponto pacífico. Poderia ser um problema menor, se pelo menos Val Kilmer tivesse tentado interpretar. Sua “atuação” foi uma das mais preguiçosas da história do cinema. Parecia que ele não queria estar ali. Talvez não quisesse mesmo, já que não voltou para o quarto filme.       

E foi aqui que perdemos o bonde da história pela segunda vez. Joel Schumacher escalou George Clooney como protagonista de “Batman e Robin” (1997). George Clooney, além de ter o maxilar sob medida para usar a máscara, era uma versão mais talentosa de Alec Baldwin. Melhor ainda, George Clooney era o novo Cary Grant de Hollywood. Bob Kane, criador de Batman, inspirou-se em Grant para desenvolver a identidade secreta de seu vigilante noturno. A atuação cínica e carismática de Clooney em “Um Drink no Inferno” indicava que tinha tudo para ser um Bruce Wayne perfeito. Não foi. Passou o filme todo com torcicolo. Joel Schumacher resolveu homenagear a série da década de 1960. Mancomunado com os produtores, que queriam um “produto para família”, fizeram um longa-metragem para vender brinquedos e sanduíches no Mcdonalds. Perderam o tom. Tudo é exagerado e artificial ao ponto do ridículo. Virou uma comédia que se levava a sério. Não avisaram George Clooney, que recitou suas falas absurdas sem o hilário nonsense autoconsciente de Adam West.

Adam West ainda é a melhor, mais honesta e coerente encarnação do Homem Morcego nas telas

Heresia das heresias: Batman fez tratamento psicológico e superou a morte dos pais. É um homem “alegre”. Para o diretor, Batman só pode ser um sujeito feliz, afinal, ele é o Batman. É rico, bonito, vive aventuras empolgantes, tem superamigos e namoradas lindas, possui um monte de equipamentos legais para brincar. Joel Schumacher redefiniu a noção de não entender um personagem. Resultado, o filme foi um relativo fracasso e deixou a franquia no limbo. Até hoje George Clooney faz piada sobre sua participação. Schumacher pediu desculpas aos fãs. Um quarto episódio, contando com John Travolta vivendo o vilão Espantalho, foi cancelado. Amém. O estrago poderia ser pior.

Depois de vários projetos abortados, tudo mudou com o lançamento de “Batman Begins” em 2005. A ideia era recomeçar, literalmente, do zero. O diretor Christopher Nolan definiu “realismo” como palavra-chave da produção. Dividiu o roteiro com David S. Goyer, uma autoridade em quadrinhos, que garantiu que a mitologia básica fosse respeitada.

Christian Bale, um dos melhores atores de sua geração, foi escolhido para protagonizar o filme. Sua dedicação ao papel foi absoluta. Ganhou músculos e estudou todas as facetas do personagem. O resultado é excelente: seu Bruce Wayne é muito bom e seu Batman, apesar da questionável opção de inflexão de voz, era o melhor até então, sobretudo na movimentação.

No conjunto, apesar do terceiro ato confuso e fora de tom, “Batman Begins” é um ótimo filme. Não foi um grande sucesso, mas indicou um caminho a seguir. O resultado foi uma continuação genial e bilionária. “O Cavaleiro das Trevas” (2008) é um dos melhores filmes de todos os tempos, além de uma das maiores bilheterias. Apresentou o Coringa definitivo e um final que estabelecia uma mudança de “status quo” instigante. A conclusão da trilogia prometia ser épica.

Foi uma decepção. “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (2012) teve um roteiro sem sentido, direção burocrática, trilha sonora repetitiva e atuações desiguais. A parte técnica continuava impecável, mas nada que não fosse obrigação em uma superprodução. Depois dos dois triunfos anteriores, essa queda brusca de qualidade parecia inexplicável. Só se pode especular se foi o sucesso que deixou Nolan exageradamente confiante, se perdeu o interesse na história ou, como alguns defendem, parou de ouvir os conselhos de David S. Goyer. O fato é que alguns dos conceitos apresentados no fechamento da trilogia comprometeu tudo o que foi feito antes, evidenciando que, apesar dos esforços, Christopher Nolan também não foi capaz de entender Batman.

Seu Batman também mata, seu Batman atua a luz do dia e, heresia suprema, seu Batman desiste de ser Batman. Duas vezes. A primeira só para fazer uma referência bobinha ao milionário recluso Howard Hughes. Se existe algo que é consagrado na construção psicológica do personagem é que Bruce Wayne é a verdadeira máscara. Batman é o homem real. O trauma de testemunhar o assassinato dos pais sufocou Bruce Wayne e o transformou em uma criatura das trevas, sedenta de vingança e justiça. Batman jamais deixaria de ser Batman.

O filme fez sucesso com o grande público e sua sedução técnica enganou muitos fãs, mas a traição de Nolan não pode ser ignorada.

Às vezes é preciso voltar para o básico. Foi isso que Zack Snyder apresentou em “Batman vs. Superman: A Origem da Justiça” (2016). O Batman vivido por um gigantesco Ben Affleck é frio, brutal, inteligente, estrategista e com recursos infinitos. É o famoso “Batman com preparo”. Funde-se perfeitamente com um Bruce Wayne maduro e desiludido. Apareceu ainda em “Esquadrão Suicida” (2016) e “Liga da Justiça” (2017). Seria um sério candidato a Batman canônico se os filmes em que foi inserido não fossem tão fracos e indecisos. A verdade é que Ben Affleck fez o Batman certo na época e nos filmes errados. Um jogo de soma zero que lhe tirou a coroa.

Ben Affleck, um reconhecido nerd, desistiu do papel. Deveria estrelar uma nova trilogia que foi reestruturada com sua saída, abrindo espaço para polêmica escalação de Robert Pattinson. Já foram divulgadas algumas fotos de bastidores, um teaser e um trailer. Ainda não é possível definir com exatidão, mas as expectativas estão altas. Robert Pattinson pode ser o Batman definitivo? Depois de tantos falsos messias, ele pode ser o “escolhido”?  

Acho que sim. É possível. Foi recorrente a escolha de estrelas ou estrelas em ascensão para viverem Batman. É inevitável que os intérpretes tragam o peso de suas personas públicas para o personagem. Com o Super-Homem, por exemplo, ocorreu o inverso. Christopher Reeve, Brandon Routh e Henry Cavill eram quase desconhecidos. Essa falta de referências anteriores favorece a suspensão de descrença do público. Robert Pattinson vai precisar lutar com seu passado de ídolo juvenil. Ele não é mais o adolescente de “Harry Potter” ou o jovem da saga “Crepúsculo”. Já é um senhor de 34 anos com uma carreira sólida para chamar de sua, dono de performances consistentes em “Cosmópolis” (2012), “Mapa Para as Estrelas” (2014), “Life” (2015), “Bom Comportamento” (2017) e “O Farol” (2019). Mas o teatro é a arte do ator. O cinema é a arte do diretor. Na franquia Batman a culpa quase sempre foi dos diretores. Tim Burton escalou mal Michael Keaton. Joel Schumacher não conseguir fazer Val Kilmer trabalhar, nem deu material de qualidade para George Clooney. Christopher Nolan vulgarizou o ótimo trabalho de Christian Bale. Zack Snyder não colocou Ben Affleck em um universo coeso. 

Portanto, a responsabilidade maior está nas mãos de Matt Reeves. Sua filmografia não é impressionante. Conta, principalmente, com o suspense “Cloverfield” e a supervalorizada refilmagem da saga “Planeta dos Macacos”. Talvez esse perfil modesto artístico seja positivo. A Marvel provou que é mais importante ter um projeto norteador do que uma visão. Cineastas autorais, como Tim Burton, Nolan e Snyder, sempre sofrem a tentação de fazerem o “seu Batman” pessoal e intransferível. Um pouco de modéstia e medo de perder o emprego podem ajudar.

Estou confiante, mas desconfiado. Que venha o “Battinson”. Por enquanto somos obrigados a reconhecer que Adam West dançando ainda é a melhor, mais honesta e coerente encarnação do Homem Morcego nas telas. Santa Papagaiada, Batman!

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.