Somos feitos de carne. Mas temos de viver como se fôssemos de ferro

Somos feitos de carne. Mas temos de viver como se fôssemos de ferro

O primeiro soco ninguém esquece. Soco no coração, quando a mãe nos abandona sem ao menos terminar uma frase. Cadê o leite, o afago, o mimo. O colo pra se encostar a cabeça. Não há ninguém na casa. Um som surdo de obra na pedreira adiante estupra o vazio dos quatro ambientes ligados à varanda. A lenha está murcha e desalentada no fogão. Você gostaria de aquecer seus sonhos com um mingau de aveia, mas a despensa morre de frio e abandono nas prateleiras. Porém, para sua surpresa, alguma sorte no universo assovia revelando a presença de uma cabra esperando pra ser ordenhada. Você corre e se agarra nas tetas da bichana. Ainda há leite. Depois também descobre alguns ovos mirrados no poleiro quase desabitado. Dá pra cozinhar e comer com o leite. É a glória.

Entretanto, precisamos suportar neste cenário a ausência de ruídos, exceto os da pedreira escrava das escavadeiras e britadeiras que a esfacelam sem dó. Faltam vozes, mexericos, lavadeiras e faxineiras nesta casa. Risadas bestas ecoando à toa. Alguém palitando os dentes e depois roubando um beijo de outro alguém. A campainha tocando, anunciando o pão fresco trazido pelo padeiro da cidadela vizinha. Mas nada acontece. Só na cabeça, nos voos solitários dos neurônios, nas tristezas úmidas e ofegantes. Nosso coração que era de carne vai enrijecendo devagar e discretamente. Parece que fibrosou, é o que se comenta na clinica da região.

Talvez ele pare de bater. Ou de chorar baixinho. Pode até necrosar, mas antes vai lembrar que já foi afagado por mãos suaves e perfumadas, quando o tempo girava sem pressa. Esse coração de pedra agora deve se virar sozinho. Olhar apenas para os sapos e lagartas que podem visitá-lo. Porque as artérias de que dispunha viraram raízes atreladas à próxima planta ainda por nascer. Sabe-se de antemão, todavia, que será uma planta vermelha, imponente, sanguínea, cuja origem todos irão ignorar.

Neste momento, algumas agonias despencam de sonhos nublados e tombam no chão desajeitadas, como minhocas sem rumo. Antes o coração era macio. O meu e o seu. De seda, filó. Às vezes se enfeitava de tule, tafetá e rendas. Em meio aos beijos a rodo estalando no ar das festas, trocados durante valsas, suspiros e rodopios. Nestes eventos, o licor de jabuticaba era servido ao final às mães, aos tios e primos.

A nós, a mim e a você, restava lambermos furtivamente os cálices, antes enchidos sem decoro. Era bom. Ouvia-se música, vida pulsante, longas tragadas de charuto, belos trajes dos convivas, comida farta, meneios previsíveis e intenções nítidas entre pretendentes e moças faceiras.

Nosso coração exultava possibilidades e encantos. Mas de repente sentimos medo. Viramos homens de lata, Iguaizinhos ao personagem do filme “O Mágico de Oz”. O coração desabou sarjeta abaixo, sem que ninguém desse conta. O amor sumira em pele e osso, maltrapilho como poetas mendigos.

Outros socos se sucederam ao primeiro. O ciúme arroxeado dos irmãos. As pequenas e efetivas maldades dos colegas de escola. A injustiça do professor de ciências. Os castigos absurdos. Respirar fundo era preciso, eu e você sabíamos para não perdermos de vista o beija flor cintilando fora da sala de aula. Além dos grandes caracóis do Carlinhos, muito bem cuidados com folhas de alface e couve, numa caixa de sapatos mantida debaixo do seu braço, na hora do recreio.

Meu coração já andava por cima das pedras, gemendo esfolado ao se entrechocar com as mais pontiagudas. Depois vieram novos desalentos. Puxadas de tapete, pregos espetados no colchão quase convidativo. Aprontaram com você também, foi? A essa altura, sentimentos como bondade, delicadeza, doçura foram trancados a sete chaves no baú de nossa avó.

Por fora restavam raiva, despeito e rancor, andando a esmo pelo sótão repleto de histórias amassadas. As emoções, reprimidas na ocasião, apresentavam-se pintadas de um negro fosco. Por outro lado a ficção, sem que se esperasse, atingia as telas do cinema. Eis que ele finalmente assomou poderoso. O “Iron Man”. Invencível. Herói de imensas lutas. Guerreiro imortal.

Nosso coração andava assustado embora entretido com as fantasias dos filmes avantajados por efeitos especiais. Afinal, era preciso manter-se atento e precavido. Nossos corpos então deveriam despojar-se da carne, dos tendões e músculos. Vestir-se de alumínio ou aço, entretanto, não surtiria efeito nem grandezas aos nossos gestos.

Necessitávamos de outras roupagens. Apossarmo-nos de uma coragem de ferro para prosseguir acreditando na fertilidade do amor em meio às cruéis batalhas da rotina. Apostarmos na tenacidade dos guerreiros da luz. Na fecundidade de ideais coloridos e emoções ensolaradas.

Somos feitos de carne. É fato. Mas percebemos nos dias atuais termos que viver como se fôssemos de ferro. Hoje, porém, fazemos isso de um modo diferente. Somos mais experientes, sofridos e prudentes. Por isso mesmo, passeamos por certas ousadias, mantendo os braços firmes e estendidos para as pequenas e irretocáveis ternuras da vida.

 

Graça Taguti

Professora e escritora.