Os corações abortados de uma infância perdida

Os corações abortados de uma infância perdida

Minha bisavó casou-se aos 12, com um homem de quase 40. Ainda não tinha menstruado. Já tinha visto o sujeito algumas vezes, perambulando faceiro nas imediações da casa, pitando pelos cantos, mas, não se podia afirmar que o conhecesse. Foi entregue a ele, pelos próprios pais, com todos os pertences dentro de uma maleta de papelão antiga. Negócios de família, sabem como é. Reza a lenda que a maleta carcomida fora usada como barricada, no meio da cama, onde o casal dormia as primeiras noites de núpcias. Consta que demorou mais de um mês para que o noivo, finalmente, fornicasse com a menina. Convenceu-a com guloseimas, surras e ameaças de não entrar no céu depois de morta, ou de virar a noiva do demônio por ter teimado com os desígnios divinos. Não foi uma, nem duas vezes, que o marido chegou da roça esfomeado, mas, o almoço não estava pronto sobre a trempe, porque a pequena se perdera no tempo, fantasiando, brincando com bonecas feitas com sabugo de milho. Ela chorava com saudade de casa, com saudade dos irmãos, com saudade da cadela cega-de-um-olho que tinha parido dez filhotinhos. Pensava em fugir daquele antro triste e solitário. Contudo, tinha medo de caminhar sozinha pelo mato, de ser devorada por lobos medonhos e outros animais malvados do cerrado. O tempo, quando não cura, amortece. Acabou se acostumando com o caos. Dobrou-se ao destino desenhado pelos pais paupérrimos, à sua condição de menina-moça que não tinha vontade própria em matéria de romance e de todo o resto. Na medida do impossível, foi ficando contente, devagarzinho, teve um punhado de filhos, que acabou criando sozinha, depois que o marido chagásico morreu, de repente, enquanto carpia uma lavoura de arroz. Quem deu a notícia de que o pai tinha boca cheia de formigas foi a filha mais velha, que levava para ele o almoço, dentro de uma panelinha de ferro enrolada com pano, que era para não queimar as mãozinhas e manter a comida sempre quentinha. Foi assim com a minha bisa paterna.

Fiquei rememorando essas doloridas particularidades familiares. Estava tonto demais, aturdido demais com a história escabrosa de uma menina capixaba que tinha engravidado do próprio tio, um sujeito de quase 40, também. Segurando uma boneca de verdade no colo, sobre o ventre bojudo que continha nas entranhas um feto estranho de cinco meses, ela contou para a delegada de polícia que era abusada pelo parente desde os 6. De acordo com a legislação vigente no país, a menina tinha direito de interromper a gestação e foi exatamente isso o que aconteceu, apesar da onda de manifestações raivosas, inumanas, que movimentaram as redes sociais e a portaria do hospital, onde a menina foi assistida por profissionais diligentes, humanistas, competentes, especializados em desembaraçar atrocidades.

As estatísticas oficiais da violência sexual contra crianças são abundantes, em especial, nos países com pior IDH. Por mais que se fale no “vírus chinês”, há — sempre houve — uma silenciosa pandemia de perversidades. Abuso sexual. Gravidezes indesejadas. Abortos clandestinos. Meninas parindo. Por mais que os temas sejam tabus, é preciso que a sociedade converse a respeito e construa mecanismos eficazes para frear o ímpeto dos agressores, a maior parte das vezes, parentes, vizinhos ou amigos da família. Os tarados de rua, “sujos”, misteriosos, tão temidos por todos, são a minoria.

Fala-se que viveremos um novo normal, após o arrefecimento da pandemia pelo Covid-19. Assim seja. E que este novo normal não nos traga mais do mesmo, ou seja, a inércia, a reinvenção da hipocrisia. Precisamos mais do que religiões, culpa e julgamentos morais para proteger as crianças, evitando que prossigam abusadas por adultos que não sabem brincar, quem dirá, amar.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.