Isso, criatura. Fure mesmo essa fila. Passe em colossal descaramento à frente de todos que aqui esperávamos a vez honestamente. Muito bem! Uma salva de palmas para o cidadão ali, tão certo de sua soberania sobre todos os outros. Bravo!
E que bela buzina a sua, cavalheiro que afunda com generosidade a mão no volante e os pés no acelerador, alardeando a superioridade de sua máquina entre os outros carros tão lentos e sua mania de obedecer os limites de velocidade e outras regras da convivência civilizada.
Exagere. Exagere mesmo na cretinice. Tampe as orelhas antes de ouvir uma crítica, feche os olhos com força para não notar a própria cegueira. Atire o lixo na rua, cuspa suas nojeiras no chão, dê trabalho aos coletores de dejetos, os faxineiros, os lixeiros e toda gente mal paga para limpar o mundo em que você esparrama suas sujeiras. Viva a imundície e o descaso! Vá em frente com os seus, às carreiras, para trás.
Regredir é uma arte tão linda e você, você que se orgulha tanto da própria estupidez, você é um artista! Que talento para julgar os outros e proteger os seus em toda e qualquer situação, sobretudo quando desrespeitam, avançam, atropelam. Afinal, o dinheiro é para isso mesmo, né? Para entrar nos melhores lugares e sair dos piores enroscos.
Adorável, encantador o seu jeito seguro de maltratar aqueles que você jura estar “abaixo”, essa gente de quem você não precisa para nada, esse povo guiando automóveis mais baratos que o seu, praticando profissões menos nobres que a sua, morando em bairros sem o mesmo valor de mercado da sua vizinhança, ah… essa gente que podia desaparecer.
Dá gosto de ver você se exibir sempre tão superior ao resto do mundo e, quando preciso, se transfigurar num segundo em persona humilde. Que habilidade tem de virar um capacho e paparicar o seu chefe, os seus clientes e aqueles de quem depende a sua existência. Quanta flexibilidade, quanto poder de transformação! Em um estalo, o déspota se faz lacaio, puxa-saco submisso, para já depois retornar ao trono do tirano. Um talento!
Quanta coragem para bater no peito e berrar “ERREI MESMO! E DAÍ?”, antes de repetir a experiência e agredir e ofender e trair e acusar e invadir e machucar sem culpa só para se sentir “por cima”, que é o seu lugar no mundo. Por cima! Merece. Você merece os aplausos de quem o admira tanto por sua “honestidade” e sua “personalidade forte”.
É admirável! Seu empenho em atrasar o relógio da história e voltar o calendário rumo a um tempo anterior aos direitos e aos deveres é realmente espantoso!
Mas olha. Enquanto você despreza, acelerado e truculento, cada lento avanço da vida civilizada, enquanto você tanto se gaba de sua esperteza, de seu poder esquizofrênico e de sua falta de modos, em algum lugar desse mundo tem alguém fazendo uma gentileza.
Tem alguém por aí, entre tantos patetas iguais a você, ousando tomar outro rumo. É gente que estende a mão, ajuda, constrói. Gente que doa, entrega, ama sem pedir em troca ou, no mínimo, cuida da própria vida sem prejudicar a dos outros. E não importa quanto dinheiro essa gente tenha. Pode ser muito, pode ser nada. Essa gente boa mantém a vida no prumo apesar do tanto que você a esculhamba. Ela é o assovio manso do universo, anunciando tranquilo em sua canção de alegria um recado singelo a você que pensa ter comprado o mundo:
“Vá se catar, sua besta!”