Um garoto serelepe de apenas oito anos que costumava passar o tempo dentro de um barril e se divertir com a vizinhança. Esse era o garoto Chaves, protagonista do seriado homônimo, exibido no Brasil pelo SBT desde 1984. O humorístico, que antes era um pequeno esquete do programa Chespirito, de Roberto Gomes Bolaños, ganhou o mundo e conquistou também os lares brasileiros, marcando de forma indelével a infância de milhões de telespectadores. A suspensão de sua exibição em 2020, contudo, expôs, principalmente nas redes sociais, uma série de acusações que põem em xeque a inocência do bem-sucedido programa. É um sinal indefectível dos tempos em que impera a sanha do “cancelamento” e da busca pelo politicamente perfeito.
O Grupo Chespirito é o dono dos direitos de texto e a Televisa é a detentora dos direitos de imagem da série Chaves. Por um entrave nas negociações entre esses conglomerados, os países latino-americanos, incluindo o Brasil, não mais poderão exibi-lo, deixando órfãos inúmeros fãs do programa, em um vácuo de entretenimento que comoveu milhares de pessoas, levando-as a se manifestar contrariamente ao ocorrido. Em suas redes sociais, Florinda Meza, viúva de Roberto Bolaños, fez coro e mostrou indignação com a supressão repentina do programa, indicando achar um descalabro retirar um motivador de alegria justamente em meio a um momento de tristeza mundial de proporções históricas, como é a pandemia do coronavírus — no que, particularmente, ela parece ter razão.
Como não poderia deixar de ser, em meio aos apoios e às súplicas pela continuidade, também surgiram milhares de fiscais do politicamente correto para vociferar contra supostos costumes abusivos perpetrados pelo seriado. As acusações são de que Chaves era um propagador de hábitos maus, violentos e nocivos, já que, por exemplo, o protagonista agredia sua amiga Chiquinha, os personagens zombavam da gordura de Nhonho e de seu Barriga, os vizinhos desabonavam dona Clotilde tachando-a de bruxa e velha, além de inúmeras outras narrativas de violências simbólicas que serviriam de exemplo para a normalização do bullying perante a sociedade que achava graça disso. Para essas pessoas, o seriado seria um script tenebroso com o que de pior uma comunidade pode adotar como valor a ser seguido.
Como se sabe, o tribunal da internet, nos atuais tempos, mostra-se implacável. O índice de proibições e “cancelamentos” retroativos é progressivo e tende a abarcar tudo aquilo que não segue as diretrizes determinadas pelos sacerdotes do politicamente correto. Notadamente, o humor em Chaves é recheado de bofetadas, pequenos conflitos com constantes trocas de insultos indiscriminados, um professor que fumava charutos em sala de aula, violência deliberada entre crianças e adultos, enfim, de tudo aquilo que mais se abomina nos tempos atuais de controle de tudo a que se assiste. A patrulha tarda, mas não falha. Foi assim com South Park, bem assim com Family Guy. Alguma hora ela iria chegar ao setentista Chaves. E chegou.
Endossando as acusações, muitos ligam o seriado à consolidação da ultradireita na América Latina. Essa associação se daria porque, além das atitudes dos personagens em relação às condições socioeconômicas de alguns deles, houve uma apresentação da trupe no Chile em 1977, em plena ditadura do general Augusto Pinochet, em um estádio que havia sido utilizado como campo de concentração pelo regime autoritário daquele país. Segundo os juízes das redes sociais, essa seria uma forma de anestesiar a população local, desviando seu foco das atrocidades da ditadura e, ao mesmo tempo, servindo de alicerce para consolidar os valores religiosos presentes tanto no governo quanto na série. Em vida, Bolaños chegou a se defender dessas acusações, ao afirmar que fazia espetáculos para o público, e não para organizações governamentais.
Após entreter pelo menos três gerações desde sua criação, agora, na nova cultura, a divertida série parece ter chegado a um platô de exaustão. Seus fervorosos fãs, é claro, são defensores ferrenhos da manutenção de Chaves e do afastamento das acusações que pairam sobre o programa na era dos “cancelamentos”. No entanto, a controvérsia diante de sua exibição parece ser mais um round do interminável embate entre os templários dos limites do humor e os que bradam pelo resguardo da liberdade de expressão e dos contextos históricos. Argumentos bons para os dois lados jamais vão faltar, mas a defesa da liberdade de expressão, desde que não abarcando crimes, deveria ser a principal bandeira de uma sociedade que se entenda por madura. Do contrário, sem querer querendo, o engessamento artístico de qualquer obra humorística do passado será inevitável. Para os que pensam o contrário, melhor do que censurar seria não assistir e ignorar. Ou, quem sabe, ir ver o filme do Pelé.