O que me dói é não poder te dar um abraço

O que me dói é não poder te dar um abraço

Devido às novas regras sociais, não o cumprimentei com um aperto de mão. Disse-lhe bom dia e pedi que se sentasse na cadeira à minha frente. Perguntei se estava tudo bem e ele respondeu: “Vou levando a vida só”. Eu poderia ter passado para as formalidades da conversa entre médica e paciente, mas como ando melancólica ultimamente, precisei ouvir o relato daquela solidão.

“Dra., sou grato pelos meus filhos pagarem o meu plano de saúde, porque tenho uma desculpa para sair de casa, já que ninguém mais me visita”. Falei que ele poderia ter enviado algum parente jovem em seu lugar, para não ter que vir até aqui em plena pandemia. Ele balançou a cabeça para os lados e ajustou a máscara que escorregava do nariz: “Ninguém sabe que vim. Se soubessem, brigariam comigo”.

Ele ficou em silêncio. Aquele homem simples e octogenário, que é meu paciente há muitos anos, que vinha animado para as consultas e que sempre me contava causos — e, uma vez, até recitou um verso que ele mesmo compôs! —, hoje, estava distante. Eu ia lhe perguntar se estava sentindo alguma dor ou qualquer sintoma, mas ele continuou: “Falo com meus netos pelo vídeo do celular e minha filha deixa as compras do supermercado na frente de casa, mas ela nem entra, só me manda uma mensagem para avisar que está tudo lá. Estou me sentindo um leproso, não posso nem mais jogar gamão com os velhos da praça!”.

Comecei a explicar que tais medidas, por mais difíceis que pareciam, eram para protegê-lo de ser contaminado pelo novo coronavírus. Mas, antes que eu terminasse minha explanação, ele me falou: “Dra., minha saúde está boa. O que me dói é não poder te dar um abraço”.

A solidão do meu paciente tomou conta da minha sala, do prédio e de todo quarteirão. Demorei alguns segundos para entender que minha mente lutava contra o corpo que queria levantar da cadeira e abraçar o velho. Demorei mais algum tempo para tentar encontrar uma resposta para suas aflições. Se eu não o acalentasse com os braços, poderia envolvê-lo com palavras… Mas o vazio subiu por minha garganta.

Após a consulta, permaneci um tempo em silêncio. Retirei máscara e protetor faciais para respirar melhor. Abracei a mim mesma e senti saudade dos braços de tanta gente. Lavei o suor e o cansaço do meu rosto, depois olhei pela janela: o horizonte também não podia me abraçar. O mundo lá fora estava estranho, quieto, diferente: era a angústia das famílias que rezavam pela recuperação do parente doente, a saudade que os amigos sentiam uns dos outros, a expectativa das crianças que sonhavam com o retorno às aulas, o medo que os enfermos sentiam e o tempo que não passava para aqueles que estavam sozinhos.

A solidão lá fora era um vírus no vento…

Rebeca Bedone

é médica.