Ainda que a morte os separe

Ainda que a morte os separe

— Alô, Andréia. É o Marcelo. Estou te ligando pra avisar que eu morri.

— Como assim, morreu? Que brincadeira é essa? Você tá onde? O Pedro está te esperando pra fazer a tarefa.

— Não é brincadeira não, Andréia, eu acabei de morrer. Eu estava indo pra casa e resolvi passar na padaria. Alguns minutos depois, houve um assalto e eu levei um tiro na cabeça. Morri na hora.

— Marcelo, eu já estou perdendo a paciência com isso. Para de me fazer de idiota e fala logo onde você está. Você deve estar é bebendo com seus amigos e rindo da minha cara. História mais sem pé nem cabeça.

— É estranho mesmo. Eu nunca imaginei que pudesse estar aqui depois de morto. É engraçado, mas eu não sinto mais o meu corpo. Aliás, estou vendo meu corpo estirado ali no chão da padaria, em cima de uma poça de sangue.

— Que peninha de você, mortinho da Silva.

— É sério, Andréia. Foi muito rápido. Não senti dor. Na hora em que a bala entrou na minha cabeça, senti um zumbido forte e depois foi como se estivesse girando muito rápido dentro de um redemoinho. Meu corpo foi esfriando e se desintegrando aos poucos. Um negócio muito louco. Lembra do Luiz Paulo, aquele advogado amigo meu que teve um infarto e quase morreu? Pois é, ele me disse, na época, que morrer não era ruim não. Fiquei rindo do cara e achando-o maluco, mas ele tinha razão. A sensação foi intensa, diferente, mas foi boa. 

— Tá bom, Chico Xavier, você morreu. Vou acreditar. Agora, me explica uma coisa: eu nunca ouvi morto falar, ainda mais pelo celular. Faz 12 anos que meu pai morreu. Eu rezo por ele toda noite. No dia do aniversário dele, eu vou ao cemitério e fico horas lá rezando. Concentrada, chorando, me lembrando dele. Meu pai nunca falou comigo. Nunca. Nem um sinal. Um vento no rosto, uma folha balançando, uma pedra caindo. Nada. Agora você quer que eu acredite que o senhor, depois de morto, tem os superpoderes e a desfaçatez de me ligar do além? Ora, deixa de ser prepotente. Quem você pensa que é? O ghost brasileiro? Deixasse que a notícia viesse pela TV. Notícia ruim anda rápido.

— Incrível que, nem depois de morto, você consegue parar de me ofender. Eu apenas morri. Não estou sendo prepotente. Eu nem sabia que podia falar com alguém desse mundo a que quase não pertenço mais. Acho que ficaram com pena de mim e deixaram que eu me despedisse. Sei lá. Mas eu estou indo embora de vez e não vou mais falar com você. Nunca mais (acho que também não devem permitir).  Eu não sei explicar por que o seu Arnaldo não quer falar com você. A minha vó já me mandou alguns sinais. Teve uma vez, lá em Minas, que eu dormi na cama que era dela e a luz acendeu sozinha três vezes. Não fiquei com medo. Eu sabia que era ela que estava ali. Apenas sorri e adormeci. Parece que dormi no colo dela, igual quando eu era menino.

— Que fofo! Sempre se fazendo de vítima, de bonzinho. Isso é típico seu. Você é a própria madre Teresa de Calcutá. Aproveita que você está aí, do outro lado, e procura pela santinha. Troca umas ideias com ela sobre benevolência e nobreza de sentimento. Você é patético. Até pra morrer o cara é escroto. Acabar a vida numa padaria. Que coisa ridícula!

— E existe morte ridícula e morte chic? Não sabia. Eu também não imaginava morrer dessa forma. Ninguém fica pensando como e quando vai morrer. Isso é mau agouro.  Quanto à madre Teresa, você me deu uma boa ideia! Eu sempre quis conhecê-la e agora vou ver se a encontro. A vantagem é que o idioma aqui é universal. Todos se entendem em qualquer língua.

— Imbecil! Só que, por conta dessa sua imbecilidade, eu é que me dou mal. Como é que eu vou fazer agora? O menino tá aqui berrando e chamando por você. Tem que ensinar português pra ele. Você sabe que eu odeio português. Amanhã é sábado, tem que fazer supermercado. Eu tenho curso o dia inteiro, quem vai cuidar do Pedro? Fazer as compras? O marceneiro vem montar o armário da pia. Você só atrapalha a minha vida. 

— Sofro pelo Pedrinho. É muito triste afastar-me dele assim, de forma tão abrupta. Mas vou cuidar dele daqui. Seguir os seus passos como um anjo protetor. Acalmá-lo nos dias de prova. Lembrá-lo de escovar os dentes antes de dormir. Quando tiver tempestade, vou dormir ao lado dele. Esse menino é agitado e preciso ensiná-lo a ter calma pra viver. Se conseguir cuidar do meu filho, eu já estarei feliz. O resto é lucro. Vamos lá, Marcelão, vida nova. Ou melhor, morte nova.

— Virou piadista agora, Gasparzinho? Pode deixar que do meu filho cuido eu. Ele não precisa da ajuda de nenhum fantasma camarada.

— Eu vou cuidar dele e você nem vai saber. E tem mais: se ficar indócil, eu puxo o seu pé de madrugada. Agora, com essas tarefas domésticas, você vai ter que se virar sozinha. Eu não posso (nem quero) fazer nada. Mas te desejo boa sorte. Você é jovem, bonita. Logo arranja outro mané que se apaixone e faça tudo o que você manda. Já estou com pena do cara, mas isso não é problema meu. É isso, Andréia, a conversa tá boa, mas estão me chamando aqui. Vou indo nessa. Tchau, até nunca mais!

— Marcelo, deixa de conversar potoca e vem logo pra casa! Marcelo! Marcelo, responde! Desligou, o filho da puta.