Ao contrário do que creem alguns autores, a literatura brasileira não se inicia no abrir de seus livros. Todo engenho de um novo título é a amálgama de referências pretéritas, uma tessitura invencível ao tempo, indispensável e luminosa. A lista abaixo é composta por obras de escritores que, cientes dessa condição, renovaram ou revigoraram gêneros e tradições literárias. Pois como bem assinalou o editor Gustavo Guertler, a ficção contemporânea precisa de “autores que não saibam com quem se parecem, mas que saibam de quem eles são diferentes”. Essa é a chave para, de fato, ter valor a abertura de um livro.
1 — Deixe o Quarto Como Está, de Amilcar Bettega Barbosa
O gênero fantástico no Brasil, cujo ápice pertence aos anos 70, nas veredas icônicas do mineiro Murilo Rubião e do goiano J. J. Veiga, avigora-se nessa coletânea de contos estupendos. Com assombroso engenho para conformar personagens que povoam o cotidiano que nos abraça, o autor os confronta com o inesperado, o insólito, o absurdo que age furtivamente sem deformar as hastes que constituem a normalidade, criando uma nova realidade regida pela lógica (ou a falta desta) do mundo redesenhado. Ao fim do livro, é inescapável ao leitor idear qual animal se hospeda nas suas costas. |
2 — Pó de Parede, de Carol Bensimon
Celebrada pelo romance “Sinuca Embaixo D’água”, a literatura de Carol Bensimon apresenta, nessa debutante seleta de contos, o motor-temático que embalará suas narrativas: o processo de formação (que também é o de autoconciliação) resultante de um trauma. Nos três contos de longo fôlego, personagens tentam lidar com o amadurecimento instalado com brusquidão, produzindo efeitos que constituem um sentido de unidade ao fim do livro. “A caixa” é um dos melhores contos da literatura brasileira. |
3 — A Passagem Tensa dos Corpos, de Carlos de Brito e Mello
Nesse romance em que o estranhamento é a clave para o encanto, acompanhamos um narrador espectral que transita por cidades mineiras coletando registros de morte, enquanto não consegue refazer-se carne. Durante essa passagem incansável, este depara-se com a absurdeza de uma família que mantém um pai insepulto, entes incapazes de romperem o liame que os salvam do tempo enlutado. Aqui, a linguagem são os despojos. |
4 — Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, de Ana Paula Maia
Um livro que é um tratado da animalidade dos homens. Formada por duas novelas que frequentam um mesmo universo, temos aqui uma realidade desidratada de todos os contornos edulcorados, crua, suja e antiutópica. Personagens que se valem de gestos mecânicos e mínimos proveitos para tocar a vida em meio à bestas e, dessa condição quadrúpede, colocar-se ao mesmo nível delas. Um soco no estômago. |
5 — A Morte Sem Nome, de Santiago Nazarian
Ousado, intrigante e instigante. Um romance constituído por fragmentos de um puzzle alucinatório, onde a protagonista suicida-se a cada fim de capítulo. Na ciranda de mortes, todavia, é que se vislumbra aspectos da vida, uma sorte de memórias e delírios que alinham passado e presente, pois ao futuro cabe a brevidade de um epitáfio. Nazarian oferece uma experiência literária contundente e hiperestésica. |
6 — Casa Entre Vértebras, de Wesley Peres
Acessar a prosa poética desse romance montado por breves capítulos, é perder o chão e ser sugado para um fluxo de devaneios, um mecanismo sinestésico no qual o homem, o ser encarnado e anímico, é mimetizado em linguagem. A casa orgânica é o cárcere de ideias que se retroalimentam de sonhos, reminiscências da infância, reflexões sobre a finitude e o credo. Um livro cujo arroubo estético e vigor da prosa valeram o Prêmio Sesc de Literatura. |
7 — Aberto Está o Inferno, de Antonio Carlos Viana
O maior contista brasileiro em atividade reprisa, nessa antologia de rutilante engenho, temas de naturezas umbilicais à sua ficção: a infância asselvajada, a perda da inocência, a finitude traumática e a cavidade de sentimentos. Viana faz das palavras o esteio para focar o regional e o universal com mesma voltagem, congelando o leitor diante de um painel onde a crueza e o encanto coexistem. Tarefa árdua distinguir a melhor narrativa. |
8 — K., de B. Kucinski
A busca de um pai pela filha desaparecida durante o regime militar brasileiro é o mote desse romance ímpar na literatura brasileira. Com um domínio técnico admirável, Kucinski constrói um elo com o leitor logo nas primeiras linhas, fazendo com que este, desconcertado, (re)viva o período de opressão e de torturas precisamente remontado por conta de uma narrativa pungente e avassaladora. Uma obra-prima. |
9 — Eles Eram Muitos Cavalos, de Luiz Ruffato
Uma cidade partida em dezenas de fragmentos narrativos que, a um só tempo, concentram suas histórias e entrecham um mosaico que compreende a um dia inteiro. Marco da ficção experimental, esse romance embalado por um fluxo contínuo, que ora sofre a velocidade de um vórtice ora a de um sussurro, reúne linguajares, aspectos de contos, qualidades de personagens e estamparias estruturais. Ao retratar um cosmo, o autor cria o seu próprio. |
10 — Pornopopéia, de Reinaldo Moraes
A galopes e resfôlegos, esse romance é uma incursão pelo submundo paulistano combustada por sexo e toxicomania. A epopeia de Zeca, um tipo incomum na literatura brasileira, um anti-herói cativante, defensor de um desbunde característico dos anos 60. Moraes faz gato e sapato da linguagem coloquial, combinando senso de humor e termos chulos. Do autor também é muito recomendada a leitura de “A Órbita dos Caracóis’. |
11 — Nove Noites, de Bernardo Carvalho
Há quem aponte “Mongólia”, mas considero este o grande livro de Bernardo Carvalho. Um tipo peculiar de romance-reportagem que combina registros epistolares e relatos de uma investigação acerca do suicídio de um antropólogo norte-americano em terras indígenas. Carvalho usa a ficção como argamassa para casar fatos desses dois universos distintos: a experiência de um homem solitário no coração da selva e as representações da cultura da tribo. O resultado propicia inúmeras leituras. |
12 — Cinzas do Norte, de Milton Hatoum
Um grande romance autobiográfico, sem de fato sê-lo. Emprestando as próprias memórias para a tessitura de linhas de ficção, a trama centra-se na trajetória de dois amigos conectados por amores, autoenganos e mistérios. Dessa relação, Hatoum coincide, com enlevo narrativo, os movimentos mundanos e íntimos de seus personagens. A vida numa condição paginada. |
13 — O Filho Eterno, de Cristovão Tezza
A autoficção, ultimamente em voga na literatura brasileira, encontra aqui seu coroamento. Um relato comovente e visceral do convívio de um pai-narrador com o filho portador de Síndrome de Down. O tom cru e impiedoso de enxergar os dias asfixiados por essa dependência intratável cobra do leitor pausas de respiro e, mesmo com o peito esmagado, este não consegue se defender do arrebatamento derradeiro. |
14 — Galileia, de Ronaldo Correia de Brito
Revisitando aspectos dos sertões de Guimarães Rosa e de Graciliano Ramos, o romance faz uma ponte entre o mundo arcaico e o moderno, centrando-se na travessia de três primos ao caminho da fazenda onde passaram parte da infância e, mais velhos, deixaram-na sem olhar para trás. A volta, em razão da doença terminal do avô, reatam laços que guardam segredos e rancores de um período de violência que tentaram apagar da memória. Por meio de uma narrativa cortante e lapidar, Correia de Brito prova que não é possível, nunca vai embora. |
15 — Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós
Sensível feito o gume de uma navalha, esse romance derradeiro ocorre na retina de um narrador-menino que revisita os desvãos assombrados do seio familiar. Tal qual nas tramas de Lúcio Cardoso e de Cornélio Pena, o lirismo se sopresa a fim de substanciar as angústias e as perdas dessa voz modulada por metáforas e jogos de palavras. Queirós, um dos maiores escritores infanto-juvenis do país, estrutura sua prosa adulta com o inverso da fantasia, uma realidade que machuca por soar irreal. “Dói muito. Dói pelo corpo inteiro”, até o fim. |