Para entrar num novo dia como quem ingressa na vida

Para entrar num novo dia como quem ingressa na vida

Olha ele aí de novo. Aconteceu outra vez. Dá sempre. Vira e mexe, um pensamento esdrúxulo arromba nossa porta e invade a casa. Sabe como é isso, né? Não é um ímpeto legítimo, um impulso de realização, uma vontade real. É só um desejo vago, um sonho distante flertando com a realidade. É uma ideia boba que chega e se ajeita.

Cada um tem a sua. De repente, o advogado se cansa da dureza de seus processos de todo dia e imagina ele mesmo tocando violão na praça, vivendo de trocados e favores. Nunca aprendeu música, mas é capaz de se ver assim, encantando uma audiência atenta na correria da rua com uma canção leve e linda que os eleve por um instante da lida ingrata.

Daí multidões de engenheiros, cirurgiões, juízes, economistas entre uma tarefa e outra se encontram no terreno improvável do sonho, na prática de uma atividade qualquer para além de suas obrigações de sempre. Nada que os faça mudar o rumo de suas vidas, sacudir sua rotina. É só um segundo de desprendimento inofensivo que os ajuda a respirar.

A enfermeira linda fecha os olhos e se transforma na dançarina de flamenco pisoteando um tablado em chamas invisíveis. O analista de sistemas encena um drama para uma plateia emocionada. O operário na linha de produção pilota uma motocicleta sem rumo por uma estrada distante de beleza vazia, silenciosa e infinita. Atores e empresários, porteiros, jornalistas, industriais e lixeiros e contadores, domésticas, frentistas, professores e camelôs, garçons, donas de casa, músicos, bedéis, jardineiros, cientistas, pintores e policiais e marceneiros, ginastas e astronautas. Todos somos iguais no espaço grandioso do sonho!

O meu sonho é simples. É uma fantasia que me acompanha há tanto tempo. Eu penso em começar tudo de novo! Não exatamente do começo, não precisa ser no útero materno. Não é pra tanto. Basta me matricular de novo na primeira série do primeiro grau da escola primária. Eu me imagino ali, adulto magoado entre as crianças sãs, aprendendo de novo as vogais e consoantes, somando, subtraindo, dividindo, multiplicando. Sonho com a experiência dos feijões cultivados no algodão, das folhas verdes mijando clorofila no álcool, deliro alegria com o desenho dos mapas da geografia. Meu sonho é começar tudo de novo.

Acontece de sonhar assim quando me sinto esvaziado. É assim que eu me sinto de quando em vez. Vazio. Sem nada. Desgraçadamente desabitado. É como eu me sinto agora. Fazer o quê? É que há tantos buracos aqui por dentro que o que existe em mim escapole sempre, vaza.

Preencher é questão de tempo. A gente repara os furos, costura, remenda, conserta e enche tudo de novo.

Tanta coisa nos consumindo em franco descaramento! Tanta cobrança alheia, tanto esforço por provar que damos conta de tudo. E as expectativas? As nossas e as dos outros. É tanta espera! Não fossem nossas duas ou três benditas esperanças, as malditas expectativas já nos teriam feito despencar na ladeira que a vida se torna lá pelas tantas. Vez e outra isso tudo cansa. Aí vem o sonho e nos salva.

Eu fico aqui, exausto, sonhando em voltar à escola primária. E daqui a pouco isso passa. Eu sonho. Sonho que você e eu nos encontraremos em algum tempo depois destes dias, noutro lugar além daqui. Você e eu nos veremos depois da tristeza, quando as buzinas estiverem quebradas de tanto uso, as represas estejam cheias de novo. A gente se atina quando essa pressa de chegar sabe Deus aonde não mais exista e o amor seja mais que um desejo vão e consumista.

Quando chegar a hora, o silêncio será bem-vindo e as pessoas serão livres para se calar quando queiram, sem nunca ser interpretadas como esquisitas ou arrogantes. E os idiotas, todos eles, todos os imbecis estarão mudos, mortalmente silenciosos e pensativos como lagartas esperando o tempo das asas.

E então a nossa alegria ah… a nossa festa virá da união de nossas lembranças perfeitas com as esperanças mais improváveis que cabem aos que sonham. Uma tarde de céu azul e vento manso aqui, uma colônia de pescadores na lua acolá. Nossas saudades mais dolorosamente belas, nossos sonhos mais abusados.

Eu sonho. Todo mundo sonha. Quase sempre nossos sonhos não mudam nada, só ajudam a respirar. Nos sonhos somos todos iguais, simples bichos bebendo água, preenchendo seus vazios, gente de carne e osso, lembranças e sentimentos, parando um pouco a corrida para o descanso, entrando de manso na noite para depois começar o dia de uma sorte diferente. De um jeito moço. Como quem ingressa de novo na vida.

 

André J. Gomes

É professor e publicitário.