Entrou cedo em minha vida, o grande americano, com “O Sol Também se Levanta”, título e livro ecoando o “Eclesiastes”. Como muitos antes de mim, refiz em Paris os passos dos personagens e até andei buscando vestígios do próprio Hemingway em Pamplona. Não os encontrei, talvez por culpa dos hectolitros de sangria numa tarde calorenta. Se vi touros na cidade basca, foi por causa de algum delirium tremens…
“O Sol Também se Levanta” causou sensação à época, baseado que fora em algumas das pessoas que frequentavam Montparnasse; Jimmie, um famoso barman de então, diria depois que havia “seis personagens à procura de um autor… com um revólver”. No livro há um almoço — jantar? — no Rendezvous-des-Mariniers, restaurante que ficava na Île Saint-Louis, ao lado da sede da revista “transatlantic review” (com letras minúsculas, como se escrevia então, para demonstrar modernidade). Jake Barnes e Bill Gorton, personagens do livro, fazem uma refeição no restaurante e depois caminham da ilha até Montparnasse, passeio que, como afirmei, até hoje é imitado por leitores de Hemingway e deve ser feito por quem quer que se encontre em Paris e se importe com esse tipo de fait divers: nas viagens ao exterior, deixa-se a vergonha em casa…
Hemingway, um tipo que vivia intensamente, participou com honras da grande festa que foi a vida cultural em Paris no século 20. A propósito e sem propósito, a jornalista e escritora Suzanne Rodriguez-Hunter (“Achados da Geração Perdida: Receitas e Anedotas da Paris dos Anos 20”) afirmou, porém, que o início da festança ocorrera bem antes, num jantar-símbolo que Picasso oferecera, em 1908, ao pintor Henri Rousseau, que, mesmo com 64 anos, era admirado pela geração mais jovem. Dele participaram várias personalidades — por exemplo, os pintores Georges Braque e Marie Laurencin e os escritores André Salmon e Guillaume Apollinaire, além das inescapáveis Gertrude Stein e sua nova amiga (e futura amante) Alice B. Toklas. Planejaram que se reuniriam aos pés de Montmartre para aperitivos no bar Fauvet e depois subiriam a ladeira até o estúdio de Picasso, onde comeriam arroz à valenciana. Plano bom, execução desastrosa.
Realmente, até aí tudo fora bem, mas a coisa desandou: no bar, Laurencin embriagou-se e ficou inconveniente; a namorada de Picasso, Fernande Olivier, ficou desconsolada porque alguns produtos encomendados não foram entregues, saindo então com Alice Toklas para tentar encontrar alguma mercearia aberta, o que não conseguiram; na subida de Montmartre, Gertrude e Leo tiveram de carregar Laurencin, que não conseguia mais andar; Fernande barrou a entrada de Laurencin no ateliê, e Gertrude Stein disse-lhe então que, depois de carregá-la, ela teria de ser aceita, com o que Picasso concordou, mas Laurencin, já dentro do ateliê, caiu sobre uma bandeja; Appollinaire, que era amante de Laurencin, levou-a para fora e, ao que tudo indica, deu-lhe uns tabefes, fazendo-a recuperar um pouco a sobriedade; vizinhos esfomeados roubaram comida; um frequentador do famoso Lapin Agile passeou dentro do estúdio com seu burro, que bebeu bastante e comeu o chapéu de Alice Toklas; cantores de rua italianos juntaram-se à bagunça e foram expulsos por Fernande; André Salmon, também embriagado, começou a brigar com todo mundo, e então estátuas começaram a ser derrubadas, para desespero de Braque, que inutilmente tentava segurá-las; um dos pintores dançou músicas religiosas espanholas e estendeu-se no chão como um Cristo crucificado; uma convidada não identificada rolou ladeira abaixo e caiu dentro de um esgoto; Rousseau adormeceu debaixo de uma vela que pingava cera derretida sobre sua cabeça e, quando acordou, passou a tocar violino. Festa estranha, com gente esquisita.
Desviei-me. De qualquer modo, Hemingway chegou à festança parisiense, creio quem 1919, e nos deixou um livro sobre o período, “Paris É uma Festa”. Mas gosto especialmente dos seus contos. “A Breve e Feliz Vida de Francis Macomber”, o meu preferido, é como “A Terceira Margem do Rio”: absolutamente exato na forma e no conteúdo. Quase tudo aquilo que se precisa saber sobre coragem e relacionamentos amorosos está na história do triste safári de Macomber.
E era deprimido, possivelmente bipolar, o nosso escritor. Não aguentou o tranco e se matou de modo extremamente violento. Pois nele, nesta data, homenageio o grande escritor, a incrível Paris dos anos 20, o homem de vida aventurosa e também os deprimidos, uma legião ainda hoje mal compreendida, apesar das fitinhas coloridas de solidariedade para se colocar em lapelas. Brindando a Hemingway, brindo à vida, mesmo quando excessiva e talvez confusa — qual a outra maneira possível de existirmos aqui neste tal vale de lágrimas?