Crédito editorial: EBC / TV Brasil
A música brasileira se divide em a.J.G. e d.J.G? Talvez não. Mas João Gilberto é um músico, compositor e cantor que, talvez mais para os artistas, se tornou um divisor de águas. Talvez não quisesse ser mestre de ninguém, pois a ideia da bossa nova não era criar uma escola fossilizada, e sim uma música renovadora. Mas o baiano de Juazeiro, nascido em 1931 e falecido em 2019, aos 88 anos, acabou por influenciar gerações. Caetano Veloso, igualmente baiano, é um discípulo, rebelde e com identidade, do pai da bossa nova. A tropicália é, de alguma maneira, tributária da arte criada por João Gilberto Prado Pereira de Oliveira. Ambas filhas da Semana de Arte Moderna de 1922.
Se João Gilberto é uma espécie de Jesus Cristo da música patropi, de certa maneira “subordinando” os artistas posteriores e dando a impressão de “subordinar” até os anteriores, por que não há nenhuma biografia decente ou indecente para explicá-lo?
A rigor, não se pode falar que João Gilberto e sua música, e a de seus parceiros, não foram destrinchados. Porque o livro “Chega de Saudade — A História e as Histórias da Bossa Nova” (Companhia das Letras, 459 páginas), de Ruy Castro, é sua grande biografia. Tanto João Gilberto quanto sua música, que permanece inovadora, ganharam uma esplêndida história na pesquisa ampla e detalhada de Ruy Castro.
Quando se pega “João Gilberto” (Publifolha, 125 páginas), de Zuza Homem de Mello, vem à mente: mais um livrinho. Nada disso. Ainda que seja um opúsculo, o autor explica tanto o homem quanto a música com uma clareza impressionante, sem descuidar de esmiuçar a arte do baiano-universal de maneira técnica. Trata-se de um estudo irrepreensível.
Zuza Homem de Mello escreve: “É um caso raro na história da música: não pode ser qualificado nem como cantor nem como violonista. O conjunto de voz e violão é um todo, um som completo, uma forma musical única. Só assim pode ser ouvido e entendido”. Violão e voz são, digamos, instrumentos musicais… complementares, integrados.
Certa feita, João Gilberto disse a Severino Filho, líder do grupo Os Cariocas: “Severa, eu gostaria de cantar de uma maneira diferente, como se fosse um instrumento”. Fica-se com a impressão de que, assim como se afina um violão, João Gilberto afinava sua voz — seguindo, quem sabe, Mário Reis. O baiano admirava Orlando Silva, que não era apenas um vozeirão, mas talvez tenha mais a ver com a voz quase-miúda de Mário Reis.
Ao gravar “Chega de Saudade”, em 1958, João Gilberto colocou seu nome na história da música patropi — como um avanço gigante. “A sutileza”, assinala Zuza Homem de Mello, “estava no violão. É que no violão estava uma nova maneira de sincopar o samba”.
Vive-se, neste momento, sob o “suspanto” da pandemia do novo coronavírus — a “estupidade” que já matou milhares de brasileiros. Mesmo assim, há uma grande notícia na praça — a Editora 34, uma das melhores do país, vai publicar, até o fim deste ano, uma biografia de João Gilberto. Escrita — viva! — por ninguém menos do que Zuza Homem de Mello.
Cadê as fanfarras? Ah, fanfarras não existem mais, só drummonds no meio do caminho. O jornalista Luccas Oliveira, de “O Globo”, publicou reportagem contando que Zuza Homem de Mello já escreveu dez dos 15 capítulos da biografia de João Gilberto. No fim de agosto, Zuza Homem de Mello promete entregar os originais à editora, que pretende lançar o livro no fim de 2020 ou no início de 2021. Uma grande notícia. Não há a menor dúvida.
Para encantar os leitores, Zuza Homem de Mello conta uma das muitas histórias de João Gilberto. Em 2000, o artista convoca-o para uma festa, no Rio de Janeiro, na casa de Simão Isaac Benjó, advogado do compositor-cantor na pendenga com a EMI/Odeon.
A festa de Benjó teria um show-surpresa de João Gilberto. Algo no mínimo estranho. Zuza Homem de Mello e sua mulher, Ercilia Lobo, chegam à festa, num casarão da Tijuca. Todo mundo bebendo, uma farra só. Ambiente pouco propício para o exigente homem de Juazeiro. “Não tem a menor chance de acontecer um show de João Gilberto aqui”, pensou o crítico e historiador da música. Numa sala, mais calmo do que Deus ao olhar as estripulias dos homens, João Gilberto tomava café com leite. De repente, Benjó anuncia o nome de João Gilberto.
O coração de Zuza Homem de Mello deve ter “escapado” duas ou mais vezes do peito, mas devolvido a tempo de ele não ter uma parada cardíaca. João Gilberto aparece, passa no meio da malta, devagarinho. Ante o deus da bossa nova, a massa vai ficando silente. “Parecia que tinham recebido uma ordem divina para ficarem quietos.”
Sabe o que aconteceu? Pois bem: João Gilberto reclamou da acústica? O músico perfeccionista reclamou do som? Não, leitor por vezes amigo. O criador da bossa nova fez um show, no dizer de Zuza Homem de Mello, “deslumbrante”. O silêncio? “Absoluto”. Mas aí, leitor pós-amigo: a desgraça! Um bêbado vociferou: “João, canta Minas Gerais!” O quê, minha gente!
Sabe o que aconteceu? Se Zuza Homem de Mello, sujeito crível, não contasse, e com tanta ênfase, eu não acreditaria — nem você, leitor pré-amigo. Pois João Gilberto cantou “Minas Gerais”, para o deleite de todos, inclusive do bêbado, possivelmente mesmerizado. “E nunca vi uma ‘Minas Gerais’ tão maravilhosa”, relata o biógrafo. Num dia de paz, João Gilberto não cobrou silêncio nenhuma vez. Não fez nenhuma queixa.
Zuza Homem de Mello tem 86 anos e está tão lúcido quanto os pesquisadores que trabalham para produzir uma vacina contra o novo coronavírus — o silencioso inimigo da vida. Ele conheceu João Gilberto em 1967 — há 53 anos — e se tornaram amigos.
No lugar de pedir entrevistas, Zuza Homem de Mello optou por ouvi-lo, sem gravar. A reportagem nada diz sobre o método zuziano. Mas possivelmente, ao chegar em casa, fazia anotações detalhadas a respeito das conversas. Quem dialoga com um deus não tem o direito de deixar de registrar o que ouviu. “Tive um conhecimento valioso dele, que poucos tiveram a chance de ter. O fato de nunca tê-lo entrevistado talvez tenha sido uma das razões da nossa amizade ter sido profunda, densa e aberta. Ele não se sentia pressionado quando a gente conversava sobre futebol ou sobre a vida.”
Zuza Homem de Mello tem muito o que dizer, e o dirá, certamente. Mas antecipa que não abrirá espaço para a fofoca e escaramuças judiciais familiares. Seu objetivo é explicar bem a obra para entender seu criador.
A reportagem de “O Globo” informa que a música de João Gilberto “é mais ouvida na França do que no Brasil”. O bom gosto dos “tataranetos” de Flaubert, Debussy e Proust é evidente. E é mais uma prova de que João Gilberto, espécie de James Joyce da música, universalizou tanto o Brasil na música quanto Guimarães Rosa na literatura. Colocando o país no século 20, em pé de igualdade com os criadores europeus, americanos e latino-americanos.
“A única coisa que realmente importou na vida de João Gilberto foi a música. Ele considerava que ela falava por ele, que não era necessário explicar sua vida, dar entrevistas, porque tudo podia ser entendido pela música”, afirma Zuza Homem de Mello. Para um crítico percuciente, tecnicamente capaz e dotado, tudo bem: está certo. Mas o ouvinte comum precisa de explicações sobre a “revolução” que a bossa nova é. Sua “sintaxe” precisa ser esmiuçada, o que Zuza Homem de Mello fez, em parte, no livro “João Gilberto”, de 2001. Até os bateristas tiveram de adaptar à “gramática” musical de João Gilberto.
Por causa de sua implicância com o som das casas de shows e do barulho do público, João Gilberto ficou com a imagem de “chato”, de “Urtigão” da música brasileira. Zuza Homem de Mello é condescendente: “As pessoas têm que entender que ele tinha um ouvido que ninguém tinha igual. Ele tinha o direito de dizer que o som não estava bom, porque o técnico de som não escutava como ele. E João explicava o que estava errado. Não era reclamações, eram anotações de alguém que tinha um ouvido privilegiado. Há raros músicos assim”.
Não se sabe se Zuza Homem de Mello vai discutir a questão de a bossa nova ter se tornado, ao menos em determinado período, praticamente uma ditadura. Ou era bossa nova ou não era música, mais ou menos assim. Talvez o que tenha libertado a bossa nova de se tornar a camisa de força da música brasileira tenha sido o surgimento de uma geração de compositores, músicos e cantores que, se deviam muito ao são-joão gilbertismo, por terem identidade, se libertaram, criando novos estilos, firmando a riqueza e a diversidade da arte do país. Caetano Veloso, Chico Buarque, Elis Regina, Gal Costa, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Belchior, Paulinho da Viola (e mais alguns) se reinventarem a partir da tradição musical do país, não apenas da bossa nova — se libertaram e, também, libertaram a bossa nova de se tornar uma ditadura incontornável.