Passados mais de 30 anos, contrariando as recomendações dos especialistas em Covid-19, em quarentena, em saúde mental e outros babados pandêmicos nunca antes imaginados, para que as pessoas evitassem os porres homéricos, os regimes alimentares famélicos e os filmes tristes — ou seja, cutucar onça com vara curta —, acabei revendo “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore. Dentre tantas premiações relevantes, amealhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1990. Foi produzido em 1988. Naquele ano, eu estava prestes a me formar em medicina. Ainda tinha os cabelos e a intrepidez de um jovem na iminência de consumar um sonho de infância, desaguando num mercado de trabalho hostil, mais conhecido como limbo existencial ou “a vida como ela é”, de acordo com Nelson Rodrigues.
O filme funciona como uma espécie de poema arrebatador ou um crepúsculo extasiante em alto-mar, pois, presta uma justa e comovente homenagem ao cinema e aos fãs da sétima arte. Acima de tudo, “Cinema Paradiso” enaltece a inocência perdida, enfatiza a ruptura inevitável, lenta, gradual, definitiva, lastimável, entre a infância e vida adulta. Filmes que contêm crianças no elenco, geralmente, terminam mal para mim, quer dizer, acabam em comoção disfarçada com pigarros, em chororô contido.
Não me cabe resenhar o filme. Muitos já o fizeram, com mais propriedade, ao longo das três décadas, desde o seu lançamento nas telonas. Aliás, o cinema italiano é particularmente genial. A começar pelo faroeste espaguete de Sergio Leone, nas parcerias que fez com o maestro Ennio Morricone, o craque das trilhas sonoras. Por falar em Morricone, foi a sua recente morte que me compeliu a rever “Cinema Paradiso”. Tomado por uma particular melancolia que só a maturidade suscita, pretendia fazer o mesmo, assistindo a outros clássicos, como “Era Uma Vez na América” (um filme de gângster que fala da amizade e que marcou definitivamente a minha vida), “Era Uma Vez no Oeste” (porque adoro western, na mesma proporção que amo o espaguete) e “Três Homens em Conflito” (pois, sou fã do Clint Eastwood, que me faz lembrar meu avô).
Como era de se esperar, assisti ao filme de Tornatore e me abati, profunda e positivamente. Foi a mesma sensação quando vi “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni, um filme de guerra que só fala de amor e de esperança o tempo inteiro. É mais um daqueles filmes que tocam no ponto nevrálgico da gente, ao botar criança no roteiro. É batata. Não há quem passe ileso, quem não se identifique com as personagens, com as suas histórias, com dramas pessoais que parecem tão nossos.
Nos anos 1980, a forma de ingressar no ensino superior era por meio do vestibular. Felizmente, faz pouco tempo, o processo seletivo mudou, o funil tornou-se mais inclusivo, do ponto de vista social, e menos traumático aos jovens estudantes. Lembro-me de estar na fila de vestibulandos, com a ficha de inscrição nas mãos. Até aquela altura da vida, só me enxergava como um futuro médico, provavelmente, influenciado — sem que ele nunca soubesse — por um tio-avô, de origem italiana, que eu insistia em chamar de padrinho, tamanho o amor que sentia por ele, ainda que nunca houvesse me batizado de fato. Fez carreira como médico generalista numa remota cidadezinha no interior de Goiás, assistindo partos complicados, curando bicheiras em seres humanos e arrancando bala da carne do povo que, naquele tempo, resolvia pendengas a tiro, como se estivessem dentro de um faroeste de Sergio Leone.
A fila dava volta no quarteirão. Minha cabeça rodava. De súbito, cogitei mudar a opção e me inscrever na seletiva para o curso de jornalismo, algo que, até então, nunca tinha me ocorrido. Suponho que a inesperada dúvida surgiu porque eu estava andando com uns caras que escreviam poesia, compunham música e tomavam cerveja barata. Sentia-me acolhido pela alcateia. O ato de escrever me acompanhava já fazia tempo e foi bastante catalisado durante a minha adolescência.
Acabei me desvencilhando daquela reflexão de última hora e escrevendo “medicina” sobre a linha pontilhada. Penso que fiz a escolha mais razoável, apesar da imaturidade. Atendi aos apelos do coração, aceitando a influência silenciosa de um parente que tanto amava. Minha tia-avó era infértil, portanto, não tiveram filhos. Descarregavam todo o amor na gente: eu e meus irmãos. Ele, o meu tio-padrinho, nos tratava com devotada atenção. Trazia-nos pastéis de queijo do mercado. Comprava-nos periquitos na feira. Fazia-nos de um tudo para agradar. Era uma espécie de ídolo para nós. Observador, eu admirava, sobretudo, as suas mãos, certas falanges peludas, típicas de um descendente de italianos radicado num inóspito povoado no interior do Brasil. Mãos que tiravam balas, como num bangue-bangue italiano. Uau! Que incrível!
Sei lá. Acho que me emocionei de novo. Essa história de pandemia, de distanciamento social, de tomar vinho quase todo santo dia, acaba deixando a gente com o coração mole demais.