Um brinde a Neruda

Um brinde a Neruda

De onde tiraste o cimento com que ergueste as colunas da tua poesia? Muitos continuam a te inquirir. Mas será que basta olhar para a natureza, as multidões, as ruas? Seriam estes os ingredientes com que preparaste o vinho para aplacar a tua sede de justiça? Não há dúvida: voaste como um albatroz migrante. E os ventos alísios foram teus companheiros de jornada. Intentaram rotular-te o canto: desesperado, louco, revoltado. Quiseram, ainda, calar-te, sufocar-te o verbo. Testavas ao limite o poder das palavras. Quando julgavas sensato, emudecia; ensimesmado, fitavas o Oceano Pacífico da tua janela de Isla Negra. Invariavelmente, recordavas os bosques interiores da tua Parral. Cobriste de reverências a fosforescência dos pirilampos, dos besouros dourados, a algaravia dos pássaros, a magia dos cavalos verdes, a saga das florestas de mil anos, da chuva intermitente que congelava a alma dos viajantes. E as folhas mortas, como numa elegia, agarraram-se às tuas reminiscências nas noites frias, carentes de lareiras e abraços. Nas cordilheiras da tua pátria, ao Sul da América do Sul, viste nascer o rio e os teus olhos faiscaram: “o rio chorava entre pedras antes de se converter em trovão e ser navegado”. Nos dias hostis, orvalhaste a poesia de lirismo adolescente. Em dado momento, foste do Sul da solidão para o Norte, onde habitava o povo; e o teu destino — lembras-te? — uniu-se ao caminhar de teus companheiros, irmanando-se à angústia da raça humana. Fugiste da tirania. Escapaste das corredeiras traiçoeiras. Armando-te de palavras (e de uma “ardente paciência”), percorreste o mundo: Paris, Moscou, Pequim, Cidade do México, Rio de Janeiro e até Goiânia juvenil. Amaste os caracóis, os pássaros, as mulheres, as viagens: o partir e o regressar. Mas foste, sobretudo, cidadão da América, de onde se ouviu o teu grito: “Canto Geral”. Celebraste os manjares, o vinho e as amizades: Lorca, Aragon, Ehrenburg e o afável Jorge Amado. Mesclaste chão e comunhão — da natureza e da cultura — para fazer ressurgir uma das veredas da tua poesia: sempre revigorada, posto que cresce como uma videira e finca raízes no solo para escavar nutrientes. Perseguiste as luzes do vaga-lume, volátil e intermitente, como um barco que vagueia pela noite delirante à procura do Farol de Alexandria. Buscaste, infatigavelmente, a vastidão dos seres. Investigaste o abismo interior (e sonoro) da linguagem. Tencionaste as cordas do poema. Tatuaste na pele da tua pátria delgada o idioma sonoro: descamando-o, transpirando-o, empapando-o do suor dos obreiros. Como as frondosas árvores de Temuco, teus fonemas geraram sementes; e essas sementes persistirão, aguerridas, nas rugas do tempo, e germinarão nos sulcos adubados da terra. Assim, uma vez mais, poderão testemunhar: o Canto Geral renascerá, diariamente, pois dele não pode prescindir a marcha pela liberdade.

Francisco Barros é jornalista, professor e diretor da Interativa Comunicação.

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