Se for para não dar a bu… é melhor nem pedir meu whatsapp…
Rio de Janeiro, início do século 20. Paisagem e clima são um atrativo para o grupo de João da Baiana se reunir. Com pandeiros e violões, descem à Penha para fazer rodas de samba. Mas o samba é proibido. A polícia aparece e apreende os instrumentos. João costumava dizer que o samba não era do morro, mas sim da planície. Subiu para lá justamente por causa da perseguição implacável da polícia, que o marginalizava. A história é semelhante no caso do rap, do hip-hop e do funk. Em comum, a origem de suas vozes: os morros, os guetos e o povo suburbano invisível que a cultura hegemônica não apenas ignora, mas quer calar.
Cheguemos ao século 21. Vemos um tempo de ascensão descontrolada do medíocre. O raso e tudo aquilo de fácil deglutição rende como ouro. Pela incapacidade de compreender diferenças alheias, as pessoas se fecham no que chamam de bolhas, massageando o ego umas das outras e atirando pedras em quem está de fora — ou do outro lado, em um eterno “nós contra eles”. Esse ciclone de intolerância foi palco para a ascensão de idiotas extremistas, impulsionados pela oportunidade aberta por uma sociedade refém do ódio. No meio de tudo isso, e com a ajuda das redes sociais, ganharam destaque também os policiais do comportamento alheio e os canceladores compulsivos. Nesse nicho, destaca-se, além do célebre revisionista de direita, o fiscal do politicamente correto que tem a certeza irrefutável de ser imaculado o suficiente para apontar dedos acusatórios no varejo e atacado.
O Brasil é um país de cultura eclética. Não vivemos mais o período onde a lei da vadiagem perseguia quem fazia batuque pelas ruas. São tempos onde aparentemente — e essa ressalva de aparência se dá pelo constante flerte autoritário que toma o país — a democracia vige em plenitude. Nesse contexto, criminalizar as letras de funk é não entender a realidade de sua origem. É o discurso dos excluídos, cujo conteúdo retrata uma realidade diária. Buscar uma higienização musical, com o controle das vozes, seria um ato de intolerância tão retrógrado quanto voltar a condenar o samba. Seria algo como punir o emissário pela mensagem emitida. De fato, não há como exigir pudores gramaticais ou temáticos para uma comunidade que assiste à repressão, tiroteios, opressão e a uma guerra civil viva e pulsante ao seu redor. Ignorar esses fatos é fazer valer a cultura racial que sempre pende em tragédia para o lado dos excluídos.
Não se pode virar as costas, também, para a diferença de tratamento em ambos os recortes. Os que condenam Ludmilla por fazer apologia à maconha são os mesmos que cantavam “Sábado de Sol”, dos Mamonas Assassinas, e ainda tratam a canção como clássico de uma época televisiva saudosa. Porém também causa estranheza que muitas das pessoas que levantam a bandeira do feminismo para condenar veementemente Dan Bilzerian, por propagar uma desprezível cultura masculina de objetificação extrema do corpo feminino, continuem a passar pano para letras de músicas como: “Vou abusar bem dessa mina. Toma, toma pica tranquilinha” ou ainda “Taca a bebida. Depois taca a pica e abandona na rua”. Sim, são letras de funk. E, não, o funk genericamente não é o responsável por isso. O machismo é forte em todos os gêneros musicais. O que se questiona é uma cultura de condenação de atitudes de um lado, mas com uma cegueira deliberada ou de valorização do outro, como um tribunal de exceção que escolhe a quem condena.
O estímulo a qualquer violência contra a mulher jamais deve ser tolerado. A cultura do estupro deve ser firmemente combatida, até que seja ceifada, onde quer que ela se encontre. O funk, por falar a língua do povo, sem rodeios e sem metáforas, talvez sofra mais diretamente com as atenções dos autoproclamados vigilantes do que as brincadeiras lexicais que os pseudoeruditos de outros gêneros fazem. Contudo, não dá para ouvir, por exemplo, uma música como “Piranha Safada”, cuja letra fala em “se for para não dar a bu… é melhor nem pedir meu whatsapp” e achar tudo bem, esquecer a misoginia, pôr as mãos aos joelhos e rebolar cegamente. Não dá para banalizar o criminoso ou o absurdo; deve-se, pois, perceber a violência sexual banalizada, condená-la e persegui-la, para não a normalizar, seja no funk, no samba, no axé ou no rock. Do contrário, a moral será seletiva e duvidosa.
Ignorar excessos ou crimes em nome da valorização da cultura das massas é nada menos que cumplicidade. A inquisição propagada pelos arautos do “cancelamento” deve se ater não apenas ao que lhes é conveniente. É óbvio que a conscientização é necessária, mas sem escolha parcial dos alvos. Ou então seguiremos como os policiais da época do saudoso João da Baiana: meros tolos, instrumentos de condenações causadas apenas pela conveniência hipócrita. E segue o samba.