Um dia acontece. Você acorda, abre a janela e encontra um tempo feio como bronca de filho em mãe, triste, dia de ser só. O céu cor de chumbo é um longo e imenso desamparo, a rua está úmida, mais vazia que a primeira tarde depois do fim do mundo, e você tem um desejo dolorido de voltar à cama, ao convívio das cobertas, ao escuro silencioso da madrugada, ao útero materno.
Você fica ali, em seu canto sem hora, colando rostos e cenas e motivos nas páginas brancas de seus vazios. Não há nada que dar a ninguém. Fica ali só, até aquilo passar.
E aquilo passa, sempre passa. Vira outra coisa e você vai em frente, vai à vida. Escolhe seguir adiante. Seu olhar insiste em ver beleza no quase tudo. Até o cheiro do dia frio vai lhe dar vontade de arrumar as gavetas, cortar as unhas, ajeitar o cabelo. Deixar o mundo bonito como no trabalho do jardineiro simples em sua intenção sagrada de enfeitar a vista alheia.
Então você compreende o quanto a vida anda à espreita. O quanto ela está ali sempre. A postos. Esperando sua deixa e sua chance de se mostrar grande. Maior que qualquer pesar. Mais alta e franca que nossas picuinhas e nossos venenos. Muito mais forte que a misteriosa e fantástica capacidade que temos nós de armazenar quinquilharias!
É a vida que aparece na lembrança preciosa dos nossos. Todos eles. Avós, bisavós, pais, irmãos, tios, tias, primos, vizinhos de ontem, amores passados, velhos amigos perdidos na neblina da indiferença, toda essa gente que mora em nossa saudade retorna em desfile de dia cívico quando viver se faz mais forte que o nosso medo de que nos soltem a mão no meio do tumulto.
Eles chegam na hora certa, com o sol ardendo depois da chuva. Voltam para avisar: é tempo de viver! E anunciam que, para aqueles que acreditam, a vida é uma lambreta alaranjada pilotada por Deus e que nós estamos na garupa! Às vezes, tem mesmo de apertar forte a cintura do Piloto para não cair.
Vê por aí quanta gente tão certa do que diz? Quantos gênios decretando que a felicidade consiste em fazer isso e aquilo e que a sabedoria está aqui e ali? Palmas para eles! Agora, se você não souber sequer onde está a chave do carro, não esquenta. Se nem sequer tiver carro e tampouco certezas, relaxe.
Quem sabe? Viver pode ser mesmo esse eterno “não ter”. De repente, aqueles que moram em nossas saudades nos jogam na cara que é preciso não ter mesmo. Quem não tem vai em busca.
Sem pressa, eles se sentam e contam uma história antiga sobre o amor e o tempo. E sugerem que é preciso ser bom para viver nesse mundo. Mas bom mesmo! Não “bonzinho”. Bom! Tem de ser bom com o mesmo descaramento de quem rouba um carro ao meio-dia, assalta os cofres públicos, engana aos outros e a si mesmos. Porque nesses tempos em que a grosseria virou competência e a firmeza de caráter se confunde com patada, para cada canalha que pratica franca e livremente suas escrotidões é preciso um batalhão de gente radicalmente boa, inescrupulosamente honesta, cruelmente bacana para equilibrar a vida.
Olha o sol ali, aquecendo nossas saudades. Voltou, sempre volta, volta para confirmar que é urgente trabalhar com alegria, fazer com amor, desejar profundo. E que desejo raso não realiza nada.
É. Talvez seja só essa mania de esperança fazendo das suas. Talvez o tempo ruim apareça mais vezes do que nós aguentamos.
Mas aqui dentro, aqui no fundo eu tenho a impressão de que nós podemos ser mais, um bocado mais que pobres bichos vivendo à toa para morrer sós. Sei lá. É só um palpite de quem tem saudade. Olha o sol ali. Olha o sol.