Peguei uma comunistinha incrível. Uma teteia. A coisa mais linda desse mundo. Precisavam ver só que filé. Dizia-se que ela comia criancinhas. Coisa de marxista, sabem como é. Eu não tava nem aí para as suas convicções politico-ideológicas. Eu só queria desopilar e cair fora. Simples assim. Inventei que era escritor. Foi batata.
A grana tinha minguado bastante nas últimas semanas. O Ministério Público tava na cola do deputado por causa do escândalo das rachadinhas. Mandaram um recado para eu sumir por uns tempos. Escolher um codinome. Trocar o chip. Deixar o cabelo crescer. Raspar o bigode. Mudar de endereço. Desligar o celular quando estivesse no perímetro do esconderijo. Evitar as baladas, as festas, as aglomerações.
Todas aquelas recomendações não tinham nada a ver com a pandemia, com o risco de me contaminar com o vírus mongol e bater as botas. Suponho que eles até torcessem para que eu me lascasse de vez. Penso que falavam de morte e de outros assuntos palpitantes durante as reuniões com a matilha de advogados. Aposto que tinham medo que eu desse com a língua nos dentes e que uma delação premiada fizesse ruir todo aquele esquema fabuloso de fazer dinheiro, extinguindo a mamata de uma hora para outra.
Eu tava me lixando para os promotores de justiça. Eu me amarrava mesmo era nas promotoras da Mary Kay. Por hora, a única rachadinha que me interessava mais parecia um capô de fusca. Ela tava apagada sobre a cama, a tal comunistinha. Excesso de shots de Cuspe Sour. Vasculhei a bolsa. Catei uns trocados. Esses comunistas viviam na maior pindaíba. Um horror. Era uma gente sem ambição pessoal. Justiça social, o cacete! Distribuição de renda? Vamos lá: furtei cinquentinha. Não compensava levar o celular. Versão antiga demais não aceitava as atualizações automáticas da Apple. Automaticamente, dei uma última olhada naquele corpo escultural. Meu amiguinho deu sinal de vida, pedindo um pouco mais de diversão. Não dava tempo. Eu precisava vazar. Ela era um achado. Um corpo escultural. Uma máquina de destruir casamentos.
Catei minha mulher e as crianças. Passaríamos uns dias no interior. Férias forçadas em família. Um verdadeiro porre. Fazer o quê? A grave situação exigia um recuo estratégico. Quem emprestou a casa foi um primo do chefe de gabinete do deputado. Era uma edificação antiga, estilo colonial, com ofurô no jardim. Nada mais classe média do que aquilo. Contudo, era um antro aconchegante. Tinha um carro na garagem. Caseiro à disposição, homem disposto, liso, calado. E um pitbull marrento, campeão de rinha, que possuía uma cicatriz profunda no focinho. Resolvi chamá-lo de Scarface.
O clima de montanha não me ajudava em nada. Mas, era o que tinha para o momento, até que os ânimos esfriassem na mídia. Meu peito chiava como se fosse um ninho de gatos. Maldita asma. Maldito frio. “Maldito deus arrancando esses poemas de minha cabeça”. Título estranho para um livro. Bukowski. Nunca ouvi falar. O ar seco prejudicava sobremaneira os meus pulmões. Acendi um Jeronimo´s. Glaucimeire pediu para que eu não fumasse dentro de casa, muito menos, na frente das crianças. Levantei o cano do berro para cima, como se a automática esticasse o pescoço para ouvir um pouco mais do que ela tinha a dizer.
Calou a matraca e foi para a cozinha esquentar o rango. Peguei o controle remoto. Éramos notícia em todos os canais. Foi muita babaquice terem colocado uma negra para apresentar o jornal do almoço. Aquele povo tava de brincadeira. Pretos. Gays. Comunistas. Era o fim do mundo. O governo devia aproveitar a pandemia para cassar concessões e acabar de vez com aquela desfaçatez. Dentro de um cercadinho, Mojo Filter dava uma entrevista coletiva aos lobos. Me benzi. Fiz o sinal da cruz, pousei a mão sobre a bolsa de colostomia — um souvenir que ganhara como recordação dos difíceis tempos de briga-de-faca-no-escuro — e orei por aquele sujeito. Um irmão em Cristo. Um patriota. Um conservador à frente de seu tempo. Um homem terrivelmente comprometido com as causas nacionalistas.
As crianças entraram gritando pela sala. Pareciam felizes à beça e aquilo era o tipo de coisa que me deixava furioso. O cinzeiro de vidro foi o objeto mais contundente que encontrei ao alcance das mãos para jogar naqueles animaizinhos. “Atirar na cabeça”, esse era o aprendizado da milícia. Acertei o mais velho na testa. A dupla correu em disparada para a cozinha, aprontando um berreiro e despejando um rastro de sangue no piso da casa do primo do chefe de gabinete do deputado. Eu é que não ia limpar aquela lambança. Assobiei duas vezes. O cachorro me surgiu latindo.
Aumentei o volume da TV. Scarface abanava o rabo, faceiro, enquanto lambia coágulos no assoalho. Antes que eu pudesse dizer “Jijoca de Jericoacoara”, Glaucimeire apareceu como um raio e disparou três vezes contra a minha pessoa, colocando um ponto final nessa história.