Hoje, acordei com um forte desejo de evasão. De fugir pra algum lugar. Minha casa-barco foi se tornando rude, inóspita, insípida. Há dois meses, eu navego à deriva no mar do tempo. Do convés, eu vejo a mesma paisagem monótona. Os dias são todos iguais. A janela emoldura um céu anil e uma palmeira imperial. Mas, não consigo mais ver beleza; nem na palmeira, nem no azul do céu. Lembro-me da “Canção do Exílio” quando ouço os bem-te-vis cantando no pé de goiaba. Eles não gorjeiam como antes. O canto deles agora é triste, opaco. As desconfiadas rolinhas se foram. Apareceu uma ratazana morta dentro da máquina de lavar. Seria o fim da felicidade?
Nessa triste manhã de maio, tencionei fugir pra Pasárgada. Livrar-me desse tempo de cardos. Suspirei pelo “perfume das rosas, dos lírios, dos nardos e outras espécies olorosas”. Lá, em Pasárgada, eu verei o Bandeira, com seu sorriso de quem engoliu um piano e seus óculos fundo de garrafa. O Bandeira não estará de terno e com semblante grave. Estará de bermuda, sem camisa, descalço; debaixo de um coqueiro, no colo de uma prostituta bonita. Eu o verei a distância. Não quero tirar-lhe o deleite da felicidade. Antes, quero eu também desfrutar dos delírios gozosos de Pasárgada. O frescor dos banhos de mar. Os passeios de bicicleta. A liberdade irrestrita. A amizade do rei. A cama que escolherei.
À tarde, foi difícil me concentrar no teletrabalho (invenção moderna). A cabeça ainda girava pelas oníricas ruas de Pasárgada. De súbito, acudiu-me o Senso da realidade. Como se caísse da cama e despertasse de um sonho bom. Qual Pasárgada o quê? A vida boa é a simples. Você não precisa de tantos sortilégios para reencontrar sua felicidade. Deixe Pasárgada para o lirismo irresistível do poeta. Você precisa do lugar comum. A aprazível rotina. O fim do expediente esperado ansiosamente. O boteco nas sextas-feiras. A conversa fiada. O petisco. O Chope emoliente cantado pelo Paulo Mendes Campos. Até o trânsito caótico de Goiânia. Transitar. Ir de um lugar a outro. Saborear o normal. Essa é a Pasárgada que queria de volta.
À noite, o Senso volta e me sacode pelos colarinhos. Que desejos vis são esses? Olhe pra você agora. Deitado em berço esplêndido, ao lado da mulher amada. Seu filho lhe faz um cafuné na cabeça. O cachorro lhe fita um olhar piedoso. Você dorme, acorda, conversa, anda. Almoça e janta. Olhe à sua volta. As marcas da batalha estão em toda parte. Escute o choro das viúvas, dos filhos, das mães. Compadeça-se com a asfixia solitária do respirador. Aconselha-me o Senso: sinta apenas a graça do momento, o milagre do existir. Já lhe bastariam; mas você ainda tem mais. O lar. O pão e o vinho. A poesia do Bandeira. E não precisa de seiscentos reais. Que mais você quer nesses tempos de guerra? O requinte da liberdade? A alegria desenfreada? Não. Isso ainda não te cabe; e creia, continua o Senso, você é um privilegiado. Envergonhei-me dos desejos espúrios. Depois, ponderei: somos seres frágeis, contraditórios, obtusos. Perdoe-nos, senhor. Acertei-me com o Senso e dormi o sono dos justos.
Pela manhã, já era junho. Abri a janela e o céu de Goiânia parecia mais lindo do que nunca. A palmeira imperial balançava suavemente e, agora, era enfeitada por um casal de araras azuis. De cima do muro, um par de rolinhas me olhava furtivamente como que me perguntando: E aí, não tem mais painço pra nós? Enchi o comedor e fui pra cozinha começar o dia. Uma surpresa: o lírio da paz que resistia num pequeno vaso de plástico floresceu; lindo, diáfano, iluminando a manhã. O Spathiphyllum que adotara no mercado central há 4 meses me dava uma última lição. Num espaço de 20 centímetros, com pouca terra, pouco adubo e pouca luz, ele foi capaz de fazer brotar, de dentro de si, a flor da paz. Tomo café mirando o lírio e me convencendo definitivamente: Pasárgada é aqui.