A atuação da crítica literária junto a leitores, intelectuais, jornalistas, está cada dia mais irrespirável. Ser crítico literário, estudar a literatura de forma acadêmica, está se tornando algo tão complicado quanto apoiar o aborto, a legalização das drogas e a discussão a respeito do casamento gay. Politicamente correto é não se importar com a teoria, lixar-se para a tradição, mandar às favas qualquer crítica ou crítico produzido nos corredores da academia, sejam eles estruturalistas ou formalistas, ligados às teorias do imaginário ou às correntes dos estudos culturais.
Os críticos recebem as piores alcunhas: repetidores, macaqueadores, dependentes dos professores e dos grandes especialistas. Aos seus detratores, a crítica é tudo, menos um ato de inteligência diante de uma obra. Os profissionais que a isso se dedicam ficam reféns da ditadura do gosto, presos nas frases feitas utilizadas como argumentos definitivos, coisas do tipo “gosto não se discute”. O que dizer diante disso?
Tentemos definir, primeiro, para que serve a crítica literária. Para que um crítico existe? Penso que o papel de um crítico é o mesmo de qualquer intelectual das ciências humanas: historiador, sociólogo, antropólogo. Desmistifiquemos para que os que se doem não cortem seus pulsos. Não, um crítico não se julga superior aos outros leitores. Não são, nem se consideram os donos da verdade. Pelo contrário, sua obrigação, intenção e compromisso é o diálogo permanente com tudo o que já foi escrito, seja nas academias ou na solidão da criação artística verbal.
Ser crítico é uma profissão como outra qualquer, como ser sociólogo também o é. A literatura não é feita para os críticos apenas, tal como a sociedade não existe para os estudos sociológicos. Essas coisas existem para a humanidade como um todo, circunscrevem-se nela, fazem parte dela. Mas nem todos têm tempo, intenção ou vocação para dedicarem sua vida exclusivamente ao estudo da literatura ou da sociedade.
Aquele que quer ser crítico literário tenta compreender as relações, correlações, diálogos que se estabelecem entre as obras e os outros campos dos saberes a fim de dimensionar o alcance, a qualidade, o que há de comum e diferente entre as mais variadas obras; ele avalia sua recepção, sua estrutura, seu alcance. Isso cria padrões de qualidade (até mesmo para serem rompidos), educa o gosto, aumenta a percepção, possibilita a multiplicidade de leitura e, entendam, de diálogo sobre as obras. Para isso, também serve a arte, para ampliar nosso horizonte a respeito da vida. Mas isso demanda vocação, e, sobretudo, tempo.
Se, ao menos em tese, a todas as pessoas se destina um romance como “A Montanha Mágica”, do admirável Thomas Mann, poucos (e cada dia mais poucos), têm ânimo para enfrentar tal colosso de mil páginas. Para estabelecer relações, ir em busca dos elementos históricos, formais, sociais que este romance tece com o mundo, nem se fale. É aí que entra o crítico, quase sempre acompanhado em sua empreitada: colegas que falaram do mesmo livro e concordaram ou não com as afirmações feitas pelo outro colega. Essa discordância em nada diminui a importância de nenhum dos dois contendores, ao contrário, a enriquece. Quem ganha é o leitor, o público que consome (ainda nesses dias de miséria intelectual) literatura, que, absorvido pela pressa dos dias, carece de norte e encontra na crítica uma indicação, um apoio daquele que, pago para ser leitor, dedica seu tempo e sua vida a entender uma obra e ampliar-lhe o alcance, o sentido.
Geralmente os detratores da crítica não são os verdadeiros e melhores amantes da literatura. Não. Trata-se dos pseudointelectuais, preguiçosos, um grupo fraco (infelizmente grande), preso na estupidez da certeza avalizada por predileções pessoais. Na outra ponta da corda, vemos um grupo de leitores de gabarito conhecer a crítica, apreciar um bom exercício interpretativo, reconhecer nela não um ato estéril e tolo de papaguear professores ou outros críticos especializados. Ao contrário disso, os intelectuais comprometidos com a compreensão do fenômeno literário, seja de qual área for, veem na crítica um ato de criação também.
O crítico, antes mesmo que Wimsatt e Beardsley escrevessem sobre a falácia intencional (aquela que entrega nas mãos da intenção do autor todos os segredos da interpretação literária), não é um mero apontador de aspectos como tempo, espaço, personagem e enredo. Muito menos um sujeito que, induzido por uma biografia, diz como funciona uma obra. O exemplo de Charles Augustin Sainte-Beuve é marcante: crítica pautada em biografia quase sempre é limitada e tímida no que diz respeito ao enfrentamento do texto.
O texto tem uma imanência, existe, é coisa dada, a linguagem não é um mero produto de uma subjetividade, está inscrita num contexto social, histórico, mas também de linguagem, de tradição. Dirão os ingênuos: “é preciso saber disso? Importa-me a história apresentada pelo livro, ou entender a intenção do poeta”. A estes, replicamos: a literatura não carece deste tipo de leitor e nem deste tipo de leitura. Ela não enriquece, não acrescenta e não é por causa de leituras como estas que a literatura se perpetua e se reinventa no horizonte da história.
O malfalado Sainte-Beuve dizia ser a figura do crítico aquele que sabe ler e ensina os outros a lerem. Eu não iria tão longe. A crítica é um instrumento indispensável, e até os que a renegam são, mesmo sem saber, por ela conduzidos em muitos momentos de suas escolhas e de suas opiniões. Ela não ensina a ler, mas potencializa, melhora a leitura, o leitor, os autores e, por consequência, a literatura.
O primeiro contato com a crítica se dá na escola. O primeiro crítico com o qual se tem contato é o autor do livro didático, que lança sentenças inúmeras sobre os escritores que fizeram e fazem a história da literatura brasileira. Um livro didático já seria uma resposta àqueles que perguntam “qual a serventia da crítica”. Mas seria uma resposta ruim, na medida em que penso dever prevalecer, seja em nível escolar ou superior, na graduação ou pós-graduação, o enfrentamento das obras para depois se ter acesso ao conhecimento da crítica.
Outro problema dos manuais escolares é sua calcificação, seu comodismo estagnante que não revisa os julgamentos, os conceitos e nem o movimento canônico que corrige erros da crítica imediatista que pode, em um arroubo, condenar ao esquecimento um autor de qualidade devido a um julgamento precipitado. O grande Gustave Lanson, por exemplo, se não atacou Charles Baudelaire, o ignorou, como também o fez Sainte-Beuve, escrevendo sobre sua vida, mas não sobre sua obra.
Os manuais podem também, com seus resumos breves, sua condensação massiva, desestimular a leitura. Por isso, apontá-los como uma justificativa da crítica não é a resposta que a valoriza, ao contrário, a reduz como reduzem os manuais os fenômenos literários.
Sendo o livro didático uma resposta ruim à pergunta a respeito da função da crítica, uma me parece razoável: se ela não ensina a ler, ela pode educar o gosto. E gosto se discute sim, embora o pensamento limitado diga que não. Quando se chega nesse ponto da querela envolvendo a existência da crítica, sua validade e sua função, penso ser preciso aceitar um fato: existe o bom gosto e o mau gosto. O que é bom gosto?
É gostar do que é bom. E o mau gosto? É gostar do ruim. Mas o problema é como definir o bom ou o ruim em literatura. A teoria literária entra em cena com seus instrumentos de análise, verificando o arranjo da obra, a estrutura do enredo, a adequação de uma estratégia narrativa à trama apresentada, as formas de se conseguir atingir a emoção do leitor, os recursos de linguagem, como metáfora, aliteração e outros, a recepção desses textos ao longo da história, sua capacidade de representação do real, seu aspecto unicamente formal, estrutural, linguístico.
Um bom exemplo é o precursor do texto teórico-crítico, “A poética”, de Aristóteles. Nela, o filósofo grego, querendo investigar o que é a poesia (nome que se dava a tudo o que era literatura na Antiguidade Clássica), acaba nos dando uma aula de como deve ser uma boa tragédia: quais elementos ela deve conter, quais os procedimentos a serem operados pelo poeta na sua composição, que aspectos temporais e espaciais ele deve obedecer, quais leis de composição ela deve seguir a fim de provocar no espectador uma emoção, o efeito catártico, o terror e a piedade.
“A poética” é um exemplo de aplicação do método crítico porque, para Aristóteles demonstrar a especificidade do fenômeno literário, ele recorre a uma obra, debruça-se sobre as minúcias de um texto, serve-se de um exemplo, dá ao texto sua imanência, mas sem esquecer-se do efeito que o texto deve ser capaz de provocar no espectador-leitor. O exemplo de obra literária por ele considerada modelo é o “Édipo Rei”, de Sófocles. Aristóteles não nos ensina somente a ver como é uma tragédia perfeita, ele nos ensina que é pelo contato com a tradição que se busca as bases para o julgamento, para a comparação, para a reflexão. Seu olhar cuidadoso a cada elemento da peça de Sófocles possibilitou a ele nos oferecer, enquanto leitores, instrumentos a partir dos quais nos orientamos ao apreciar uma peça e, para aqueles que escrevem peças, orientou no sentido de guiá-los para um campo mais ou menos certo de como fazer bem feita a sua tragédia. Suas regras são uma camisa de força? Jamais. O rompimento enriquece e o modelo, se educa, mostra também quando precisa ser rompido para se prosseguir dali adiante.
Preferir ou não preferir não qualifica nada como bom ou ruim. É possível e aceitável eu não adorar uma obra muito boa e ter apreço por uma obra cuja qualidade é discutível, mas talvez porque esta, de qualidade incerta, dialogue mais com minha subjetividade eu a prefira a uma obra-prima. Até aqui, tudo bem.
O problema é quando eu considero uma coisa boa só porque eu gosto dela ou considero uma coisa ruim porque não gosto. Nesse ponto a razão cede espaço à emoção (coisa legítima em se tratando de seres humanos), porém o diálogo intelectual se encerra. Não se trata mais de discutir gosto, mas sim preferências. Preferência, eu concordo, não se discute, mas gosto, sim. O papel do crítico não é fazer com que se goste ou se prefira isso a aquilo, mas sim com que se seja capaz de reconhecer quando algo, em arte, é bom ou ruim, quando é bem feito ou não: essa é a única forma de reconhecer as nuances do gênio humano e onde ele se manifesta. Os patrimônios da raça humana devem valer mais do que o patrimônio das nossas preferências.
Que se prefira o razoável ao genial, mas fazendo isso com consciência, com honestidade, sem se doer e se deixar magoar por se reconhecer com uma sensibilidade menos apta ao que tem, de fato, qualidade.
Esta colocação me faz voltar à questão do cânone. Essa discussão é quase sempre levantada quando se debate ou não a necessidade de se ler e conhecer a literatura contemporânea e não ficar preso “somente” aos medalhões. Os críticos que se dedicam ao cânone e defendem sua leitura são chamados de elitistas, donos da verdade, preconceituosos, arrogantes. O próprio Harold Bloom, atacado, apelidou seus oponentes de “militantes da escola do ressentimento”. Mas o fato é que, sem o cânone, não vejo como compreender e dialogar com competência sobre o contemporâneo.
É uma encruzilhada, pois o domínio do cânone é, no mínimo, difícil. De forma completa, impossível. Assim, escolher o contemporâneo em detrimento do cânone parece-me uma escolha quase sempre perigosa, haja vista que o tempo é mesmo curto, e conhecer literatura demanda tempo, muito tempo, talvez, das artes, seja a que mais demanda.
A literatura contemporânea deve ser lida. Em nenhum momento propomos o contrário. Pode ser bem apreciada, analisada. O homem estar em diálogo com o seu tempo é necessário. Mas o leitor não especializado, porém contumaz, que lê os clássicos, está mais preparado para o novo. Saberá reconhecer-se ali, na obra literária contemporânea, não como um espelho de sua carne, não valorizando apenas o fato de ela ecoar com maior vigor por ter sido produzida em sua época, mas sim como um humano que carrega uma tradição atemporal, presente nos livros de ontem e de hoje.
O leitor contumaz saberá algo mais e talvez o principal: a língua, nosso instrumento de comunicação, serve para muitas outras coisas, e pode tornar o alheio particular por via da arte.
Já para um estudioso, um profissional da literatura, o cânone é indispensável e deve ser sua prioridade. Se Italo Calvino estava certo ao dizer que “clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, devemos ser honestos em reconhecer o fato de estarmos em uma época cada dia mais escassa de livros com essa envergadura. As razões para esse empobrecimento da literatura, não sabemos, e poderíamos fazer diversas conjecturas, mas todas seriam especulações carentes de embasamento sólido.
Mas a respeito do empobrecimento dos leitores, podemos apontar com certeza a falta de professores de literatura leitores. Uma sala de professores de uma escola é um bom termômetro: onde deveriam se reunir os intelectuais responsáveis pela formação cultural dos jovens, vemos leitores (e quando são) de “Crepúsculo”, “O Caçador de Pipas” e “Código Da Vinci”. Estes sim, meros papagueadores do livro didático. O grande crítico Otto Maria Carpeaux, em sua monumental “História da Literatura Ocidental”, sentencia: “Enquanto a crítica literária se ocupa continuamente de revalorizações, destruindo os ídolos da convenção e revivificando autores ou épocas inteiras injustamente esquecidas ou desprezadas, os professores de História Literária repetem sem cansaço os mesmos clichês”.
O leitor que leva em consideração a crítica sabe mais reconhecer o valor e a importância dos clássicos, e saberá discutir com mais habilidade o que lê, saindo do lugar-comum das impressões e emoções causadas por um enredo que o leve às lágrimas ou ao riso. Clássicos e crítica formam um binômio perfeito porque ambos nos fazem reconhecer o primordial em literatura: interessa mais o como é dito, e não o que é dito. Os canônicos resistem ao tempo por sua força de linguagem, até porque as histórias já foram, de certo modo, todas contadas. Os críticos cooperam no entendimento e perpetuação das obras porque olham para os procedimentos e são atentos ao conteúdo como consequência e parte da forma. Orientado por esse binômio, talvez, possa se chegar a um reconhecimento mais pleno e satisfatório da literatura. Mas prepare-se aquele que assim o fizer: estará no limbo dos politicamente incorretos.