Não me aguento mais. Vou embora. O último que sair apaga a luz
Chega. Cansei de mim. Faz tempo que venho me aturando, fingindo que a minha presença não me incomoda. Só que agora, realmente, não dá mais. Não suporto meus passos sempre apurados, minhas passadas largas e aquela pisada torta. Ando muito rápido, vivo numa maratona interna competindo comigo mesma, quando poderia — pelo menos uma vez ou outra — me sentar no banco da praça e ver a banda passar.
Não consigo sair de casa sem uma rota de atividades. Muito menos caminhar vagarosamente como as crianças que dão seus primeiros passos, tomar um sorvete aos pouquinhos com pena de acabar, me esquecer do mundo contemplando a chuva na janela… Gostaria de ser assim. De verdade. Mas não sou, ou se sou, faz tempo que não estou sendo.
Ando de saco cheio dessa minha pressa de chegar, depois de partir, porque tenho sempre tantas coisas por fazer! Eu não tenho tempo para tomar um café no meio da tarde com bolo de fubá e conversa fiada. Aliás, eu não tenho tempo para nada e reconheço que essa falta de tempo me tira o tempo, inclusive, de ter tempo para mim.
Não convivo comigo. Quase não me vejo. Me tornei praticamente uma estranha dentro de mim mesma. Saio cedo, volto tarde. Não me cruzo, não me ligo, não me presenteio e já nem lembro mais do que eu gosto. Às vezes, sim, me dou ao luxo de ouvir as minhas lamúrias, ainda que fatidicamente termine mal. Discordo, renego, me exalto. Depois me ignoro. Fico com raiva de mim. Magoada. Como um casal quando briga e um não suporta nem a respiração do outro. Estou desse jeito. Porque a minha voz também me tira do sério. Me irrita se estou sensível e chorosa. Me irrita quando nervosa e impaciente.
Não aguento mais essa coisa de ser geminiana com ascendente em Áries. Posso mudar? Escolher um signo que me deixe zen? Um ascendente menos temperamental? Não. Eu sei. Tenho que conviver com os múltiplos interesses, minha intensidade absurda, a exaustiva dualidade e a tal da cabeça dura. Mexo demais as mãos quando falo — é mais forte do que eu — e estalo os dedos compulsivamente. Tenho a mania de olhar bem dentro dos olhos como se estivesse inquirindo, mesmo que, porventura, eu esteja apenas tentando desvendar as nuances de castanho. Sou agitada, ansiosa, estressada e essa inquietude me incomoda absurdamente, como um relógio cuco anunciando a meia noite.
Minha cabeça está aqui, está nas contas do fim do mês, nas eleições presidenciais, no relatório que tenho para entregar até o fim do dia, na reunião da escola… Meus pensamentos estouram feito milho de pipoca na panela. O tempo todo. Minha mente amanhece e adormece pipocando.
Olha, vou te contar que meu relacionamento comigo está por um triz. Muitas vezes tenho vontade de sair de casa, bater a porta sem olhar pra trás. E o último que sair que apague a luz! O clima pesou, o disco arranhou, a música parou. Cheguei na encruzilhada da minha vida.
Estou cansada das minhas promessas empoeiradas na prateleira, das juras de um tempo só meu, aquele papo furado de pegar um cineminha no domingo, tirar um cochilo no sábado depois do almoço. Quando me vejo, lá estou eu fazendo mais uma lista, planejando algo novo, encaixando mais um compromisso entre uma respiração e outra. Tenho essa mania chata de fazer listas de tudo. Resultado: me frustro, e quanto maior a frustração, mais me distancio de mim. Vivo num círculo vicioso de ocupação de tempo que me manipula, não me deixa olhar aqui para dentro. Meu peito mais parece um terreno baldio, daqueles com a mata crescida, cheio de entulho, muro pichado.
Eu preciso tanto de mim. Não posso mais viver desse jeito, de cara feia, com palpitações, resmungando entredentes. Preciso me aproximar do meu eu. Então, num súbito de coragem, decidi arredar os móveis do lugar e fazer uma boa faxina. Enquanto escutava Oswaldo Montenegro, aconteceu o milagre. Foi vasculhando as gavetas da minha casa abandonada que, por fim, no meio dos sentimentos e debaixo de um livro, me reencontrei com a minha “metade”. Uma menina com alma de pássaro, que gargalhava no embalo do balanço, ali, junto da amendoeira. Continuava de cabelos soltos e os pés descalços. Me contou dos anos que ficou esquecida olhando a imensidão do mar, à espera da minha volta…
Estive tão ocupada com o meu empenho na vida que deixei a minha indiazinha para trás. Dona de um coração do tamanho do mundo, ela foi capaz de me mostrar que o mundo não é maior nem mais importante que o meu coração.
É… Acho que estou me apaixonando por mim de novo…