Nosso medo é um tremendo tapa na cara

Nosso medo é um tremendo tapa na cara

Logo de saída, nas inúmeras situações em que ele se apresenta (ou se esconde) o medo, ou o Medão — pai de todos os medos, mesmo os mais chinfrins — se protege com um séquito de desculpas, as mais esfarrapadas. Ou deslavadas possíveis. A gente vive, desde pequeninos, fazendo de conta que o medo não é medo. É outra coisa. Veste nele uma fantasia de conveniência, explicações baratas, apaziguamentos fortuitos endereçados à nossa exasperada e sempre vigilante consciência.

Imagine-se aos 10 anos de idade, decidido a mergulhar pela primeira vez na parte mais funda da piscina do clube que costuma frequentar aos domingos. E aí, todo serelepe e eufórico, lá vai você desvirginar-se nesta experiência aquática. De repente — pá! — dá tudo errado. Você mergulha, mas leva a maior barrigada, que queima toda a barriga como ovo estrelado fervente na frigideira velha. Uii. Nunca mais.

Pronto: já está o medo virando medalha de desânimo no painel das tentativas frustradas em seu cotidiano. Novo cenário. A famigerada prova de matemática. Você estudou pra caramba, sabe até ensinar para os coleguinhas algumas equações cabeludas e vem a hora do exame. Creu. Você tira 3,8 de nota e olhe lá, depois de muito suplicar ao professor. Mas como assim?

Outra medalha da mais recente desventura é afixada no quadro do fracasso. Tempos depois, você vai com a turma da escola a um parque de diversões e um dos brinquedos na lista dos mais cobiçados é a portentosa montanha russa. Uau. Você aguenta? Quem disse? Ok. Sem problemas, porque, precavido como é, desconfiamos que já trouxe para o passeio, enfiado na mochila, o metafórico rosário de desculpas e senões, todos articulados entre si, para fugir do desafio. “Tenho pressão baixa” Sofro de Acrofobia — ou seja, vertigens de alturas”; vomito sempre em lugares altos e por aí vai. È rosário que não acaba mais.

Os medos. Brrr. Vão nos seguindo e dando as mãos para nós durante nossos trajetos pela vida. Medo de dizer a verdade aos pais, nas inúmeras circunstâncias. Que está louquinha pra transar aos 13 anos, com o garoto mais gato do seu colégio. Medo de mentir, em contra partida, que não sente nenhum tesão pelos meninos da sua idade. Só por meninas. Quem se arrisca a confessar?

Tapa na cara dói. Dói, humilha e desmonta. Melhor fazer teatro e ir resolvendo as pendências em conversas solitárias com o seu diário ou com o grupo de amigos que está sempre com você no recreio e nas demais atividades de lazer.

O primeiro porre, aos 15 anos. Bebeu todas, se esborrachou na soleira da porta do clube reservado para a inesquecível festa de debutantes. Corre pro banheiro. A tia Alzira está lá para te acudir. Vestido novo. Perfume na bolsa, lenço de papel descartável para auxiliar nas golfadas de bebida azeda, jorrada diretamente na privada. Aargh. Cruzes. Que nojeira. Não. Seremos mais condescendentes. Diríamos que estes momentos apenas constam das saudáveis trapalhadas da adolescência.

Finalmente você entra no salão de baile, com cara de anjinho de festa de igreja.“Minha filha, que demora! Onde você estava até agora, só faltava você, Elisa, pra valsa das debutantes começar. Seu pai tá aflito, menina.” “Nada, mãe”, você retruca. “ Tive uma enxaqueca braba e a tia Alzira estava lá no banheiro me ajudando. “Tudo beleza, resolvido. Vamos dançar!”

Disfarces que se somam e vão acumulando histórias afora. Puxadas de tapete nos fatos cotidianos. Como dizer pra Maria Júlia que você não gosta mais dela, André? E o medo da garota aprontar o maior escândalo ou querer cortar os pulsos. Vá em frente. Uma desculpa bem colorida às vezes consegue camuflar o preto e branco da desastrosa cena.

Tesão pelo namorado da sua irmã. Cadê a ética, o manual de conveniências? Deus meu. Não teu jeito. O elevador chegou. Vocês dois se espremeram juntos no oitavo andar e foram se chupando como loucos, até o térreo do Edifício. Alguém soube ou desconfiou? Claro que não. Cara de pau é um recurso inato que já está pronto pra ser usado desde cedo, nas saias mais justas da nossa existência. Ninguém duvida.

Repare que estamos até o momento falando dos pequenos medos, os medos das fases do nosso instável crescimento e as frequentes escapadelas dos necessários enfrentamentos. Tão bom sair de banda, como frisava a velha gíria, se fazer de morto, pintar uma cara de paisagem – e se desvincular das comichões inevitáveis, próprias de climas opressores.

Mas e a outra categoria. Aquela dos Medões — os pavores graúdos de assumir desejos, instintos muitas vezes contraditórios, além de deveres e responsabilidades sem quaisquer escusas. Angústia ao segurar as rédeas dos próprios atos e escolhas. Usar ou não usar drogas? Ser hetero, bi ou pansexual? Frequentar cultos religiosos distintos ao mesmo tempo. Rezar para Deus e o Diabo simultaneamente. Ter vontade de rasgar todas as melhores camisas do marido, porque ele desconversou sobre as manchas cor de rosa em alguns colarinhos suspeitos.

Você se vinga. Falar a verdade a troco de quê? Depois, tudo se arranja. Diz que o motor da máquina de lavar engasgou , engripou e acabou esgarçando as tão lindas camisas do seu cônjuge.

Falar a verdade pra quê? Vingança dá gosto, além de ser um prato que se come deliciosamente frio, devagar e em silêncio. Aliás, quem não é chegado a uma baixaria consentida? Basta ver candidatos a altos cargos nas esferas políticas, em épocas de eleições, sobretudo, como soltam cobras, lagartos, ratos e vespas em seu denegrido vocabulário. Vossas excelências hão de concordar.

Vamos lá ter um papo reto, agora. Assuma o medo avantajado de reconhecer sua pobreza de espírito. Dá um trabalhão danado tornar-se uma pessoa melhor, mais digna e generosa. E dá preguiça também esforçar-se para garantir um lugar de honra no paraíso azul que, no final das contas, você nem o encontra na geografia do universo.

Só por isso você já merece mais que uma tapa estalado, brother. Merece um soco de direita bem no meio da sua cara de bunda. Além de alguns murros na sua coragem que resolveu tirar férias no resort da covardia e deixar a bravura de lado. Medo é freio. Antídoto da alegria. Para-choque da felicidade. Anticlímax de prazeres. Nocautear é o verbo da hora.

Dizem os filósofos de plantão que a gente deve carregar o medo debaixo de um braço e a coragem no outro. Assim, de posse dessas duas munições, sair descobrindo os atalhos do acaso e topar com sustos medonhos. Leões, serpentes imensas, tempestades, incêndios devastadores, furacões em série. E ainda e tentar escapar ileso ,depois dessas catástrofes. Será que consegue?

No caso específico, a sugestão é assumir é a consciência do medo. Já é um passo e tanto. A seguir, sem perder tempo, é fundamental chamar a coragem, o destemor, todos os aparentados, para uma conversa séria e à queima roupa. Daquelas sem subterfúgios. Olhos nos olhos.

É fácil? Quem disse? Mas é bem interessante tornar-se cúmplice de algumas belas aventuras que esta fascinante vida oferece.

Ou então, há opções: a decisão é toda sua. Você pode resolver levar sua existência recheada de tapas na cara, olhos roxos e pescoções a torto e a direito.

Graça Taguti

Professora e escritora.