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Mais uma manhã de domingo com manifestação governista na capital federal. Em um canal no Youtube, é possível assistir a um dos entusiastas, que se autodenominam patriotas, narrando os acontecimentos à sua volta. “Família!” — repete aos montes, estridentemente, sempre que encontra grupos reunidos. Ao se deparar com uma senhora branca com seus parentes, mira de soslaio seus olhos claros, um tanto pérfidos, elogia-os e satisfaz seu ego, afirmando que aquelas pessoas, sim, representam a família tradicional brasileira.
Um dia antes, na mesma cidade, influenciadoras digitais — essa nova profissão que consiste em incutir tendências nas redes sociais — resolveram fazer uma festa, Sim, festa. Aglomerações de pessoas com alegria, descontração, interações físicas e bebidas. Havia até mesmo profissionais de enfermagem testando quem entrava, para saber se alguém poderia estar infectado pelo covid. “Cuidar da saúde”, afirmara uma convidada. No mesmo dia, o Brasil também “comemorava” a incrível marca negativa de 1 milhão de infectados e 50 mil mortos. Mas as festas continuam. O tempo é curto e a vida é uma só.
Não tão longe do epicentro efervescente das manifestações e do júbilo, na cidade de Goiânia, três componentes de uma mesma família faleceram em um período de cinco dias. A causa das mortes foi a mesma: o covid-19. O filho não tinha nenhuma doença preexistente e era relativamente jovem. A mãe e o pai foram a óbito em dias posteriores, quebrando a sequência natural da vida. Uma família que, em menos de uma semana, tornou-se apenas mais alguns números, ao lado de tantos outros, na lista milhar que seguimos acompanhando diariamente. Acabarão apagados e esquecidos por quem deveria provê-los com a prevenção e os cuidados necessários. A morte, por aqui, virou uma banalidade tão pouco chocante que as pessoas tentam acenos de normalidade nas ruas sem nem saber ao certo quando chegará o pico da doença.
São três realidades simultâneas, contraditórias e inacreditáveis. De um lado, a morte, a agonia e a dor. Do outro, o deboche, o pouco caso, a irresponsabilidade e a falta de humanidade. Aos que sobreviverem a isso tudo, restará saber em qual lado suas barcas soçobraram durante o momento atual de dissabores. O distópico mundo da cegueira ideológica contrasta com uma realidade dura, cheia de perdas incontáveis — tudo no mesmo balaio. São traços da marcha fúnebre brasileira, que caminha a passos largos para a lata de lixo da história, estranhamente, ao som de músicas nacionalistas, cânticos de aniversário e dores abafadas.