No fundo, nossa única certeza é a de que estamos na dúvida

No fundo, nossa única certeza é a de que estamos na dúvida

Pode reparar. Por mais que tenhamos crescido, por mais que o tempo nos leve longe e os anos passem varrendo lembranças, distorcendo fatos antigos, apagando rostos e imagens como em velhas fotografias, por mais que aprendamos a ser adultos no comando seguro de cada passo, há sempre um medo infantil que nos resta. Sempre um monstro esperando debaixo da cama, desafiando com olhos de fogo e coração pequeno nossa coragem de gente grande. Vistos assim, você e eu e todos aqui somos iguais.

Há uma hora, lá pelas tantas da vida, em que nos tornamos idênticos. Há um tempo em que retornamos à nossa condição original de bichos, trêmulos animais de casa acuados, atraídos pela luz e o calor do fogo no frio caminho solitário em que se transforma a vida de quando em vez. Os monstros continuam ali.

Nessa hora, para além de nossas distinções e diferenças, nossas singularidades reais ou imaginárias, todos viramos pequenas partes de uma só angústia, uma grande, original e insuperável aflição universal. Há um tempo em que todos nos tornamos quebradiços como as almas assustadas e submissas que entram nos lugares de braços cruzados e olhar atônito, andando devagar, à espera certa da pancada seguinte.

Em defesa própria, abrimos nossas certezas como guarda-chuvas baratos, comprados na feira, e saímos no temporal de canivetes. Destemidos e prontos para a lida e para a luta. É da vida. Seguir entre cortes e tombos, rasgos e pontos. Continuar de pé.

Mas aqui dentro, no fundo de nossa confiança, respira com dificuldade de asmático uma pavorosa insegurança. Dormem roncando alto nossos medos mais feios. Roncam para que não os esqueçamos, apenas nos acostumemos à sua presença como quem mora à beira de uma rodovia, às margens de um aeroporto. Uma hora, deixam de incomodar. Até despertarem abruptos em desastres na madrugada, quedas assustadoras às onze da manhã, barulho medonho.

Quando chega essa hora, nossa segurança e nossas certezas, nossa empáfia e nossas conquistas anteriores fogem por todos os lados, como ratos afoitos correndo de seus algozes. E toda a coragem que há em nós se presta apenas para nos manter vivos, firmes em nossos abrigos improvisados, esperando passar o vento e a chuva que nos castigam na noite longa.

Cargos, hierarquias, nomes e sobrenomes, contas bancárias, títulos, currículos, nada disso compra um só segundo de alívio na hora mais dura do desamparo que nos aflige. Somos pessoas e pessoas são bichos e bichos têm medo, pavor, pânico, dor de barriga. Algumas poucas têm a valentia de admitir. Poucas, loucas e olhe lá.

Para muito além de nossos méritos, nossas conquistas, cifras, convicções e propriedades privadas, somos todos pobres bichos falantes à procura de escuta, tocando em frente com a coragem que sobra porque a vida é de quem não teme enfrentá-la. Aqui bem dentro, somos nossas almas simples de braços cruzados, esperando a pancada seguinte ou o instante de conciliação e entendimento, a alegria de uma dança improvisada, o encontro feliz, o sorriso temporão. A felicidade breve e escorregadia.

Certos, mesmo, nunca estaremos de nada. Nós nos merecemos. Somos nossos próprios monstros debaixo da cama, querendo nossa própria atenção. Escondidos na concreta fragilidade de nossas certezas. Cada um de um lado do muro, tomados pela mera ilusão de que existe o muro e de que pertencemos a um lado só.

André J. Gomes

É professor e publicitário.