No senso comum, nada é tão democrático na vida quanto o seu próprio fim. No entanto, em terras notabilizadas pelas noções de “igualdade, fraternidade e liberdade”, é simbólico que um hospital parisiense tenha inspirado um ensaio com uma quebra de expectativa sobre tal momento. Mas foi no 15º arrondissement que George Orwell tirou suas observações para Como Morrem os Pobres.
À época, o final da década de 1920, a surpresa do britânico com a situação em Paris se deu em grande parte por conhecer o que era o começo do inovador seguro de saúde instaurado no Reino Unido. “O caso de gente morrendo como animais, por exemplo, sem ninguém ao lado, ninguém interessado, a morte nem mesmo notada até de manhã, aconteceu mais de uma vez. Isso certamente não se veria na Inglaterra, e ainda menos se veria um cadáver exposto à vista dos outros pacientes”, escreveu.
Se o fim não é democrático, quem dirá a sequência. Na própria cidade, enquanto os artificies iluministas têm todas as glórias no Panteão Nacional, turistas são quase implorados a não tocar os restos mortais dispostos nas Catacumbas de Paris. No espetáculo grotesco, 6 milhões de indigentes têm seus últimos resquícios a conviver em meio a selfies de ávidos visitantes. O período no qual os restos mortais foram despejados em fossas comuns na cidade abarca um espaço de tempo muito maior do que o que engloba as reformas no sistema sanitário que vieram após o ensaio de Orwell até os dias hoje.
A experiência que levou Orwell a escrever Como Morrem os Pobres era a sua primeira em um hospital público. O autor teve momentos mais abastados na vida, em especial quando frequentou a elitista Eton na infância, mas aos seus 26 anos, época do ensaio, não vivia momentos confortáveis financeiramente. Outro fruto de sua experiência na miséria parisiense foi o livro Na Pior em Paris e Londres. A formação de Orwell o auxiliou a questionar o tempo todo sua experiência no espaço. Enquanto se espantava com os métodos de médicos, enfermeiras e estudantes, ficava impressionado com a resignação dos outros pacientes. Assim descreveu: “era minha primeira experiência com médicos que lidavam com a gente sem falar com a gente, ou, num sentido mais humano, sem reparar na gente”.
A postura dos estudantes de medicina, que na época tinham grande parte de sua formação nos hospitais, incomodou extremamente Orwell. “Era uma sensação muito esquisita — esquisita porque ao lado do interesse deles em aprender a profissão havia uma aparente falta de qualquer percepção de que os pacientes eram seres humanos”, ao que acrescentou que “na qualidade de paciente não pagante, no uniforme de camisão, a gente era sobretudo um ‘espécime’”.
O incômodo particular talvez derive de uma experiência descrita no mesmo ensaio quando conta que: “tenha efetivamente visto dois estudantes matarem um rapaz de dezesseis anos, ou quase mata-lo (ele parecia estar morrendo quando saí do hospital, mas talvez tenha se recuperado depois) com um experimento nocivo que não teriam tentado com um paciente pagante”. Em uma perspectiva mais histórica, Orwell conclui: “Os hospitais começaram com uma espécie de enfermaria temporária para leprosos e tipos semelhantes morrerem, e continuaram a ser lugares em que os estudantes de medicina aprendiam sua arte nos corpos dos pobres”.
O NHS (National Health Sistem) foi uma revolução em 1948 ao ser instalado em uma das maiores potências da época. Com fundamental apoio dos conservadores, e depois consolidado por trabalhistas, o sistema universal de saúde no Reino Unido mudou paradigmas até mesmo do direito à vida. Até metade do século anterior, era comum mesmo uma descrença com a medicina. Além de relatos de experimentos sádicos com indigentes, alguns processos eram meramente tão ineficientes que não fortaleciam a crença de muitos. Em os Irmãos Karamázov, escrito por Fiódor Dostoiévski em 1879, o personagem Kólia Krassótin acha por bem considerar a classe médica como “idiota”, e a afirmar: “Eu nego a medicina. É uma instituição inútil”.
A situação não havia evoluído muito desde o século 16, quando Michel de Montaigne deu início à concepção de ensaios. Sobre a medicina, o autor disserta sobre sua não crença em tratamentos, médicos e medicamentos. Conviveu por boa parte da vida com dores lancinantes causadas por pedras nos rins. Nem por isso pensou em recorrer aos doutores.
“Além disso, o seguro de saúde nacional acabou parcialmente com a ideia de que um paciente de classe operária é um miserável que merece pouca consideração. Com este século já bem avançado, era comum nos grandes hospitais que pacientes ‘livres’ tivessem seus dentes arrancados sem anestesia. Eles não pagavam, então por que deveriam tomar anestesia — essa era a atitude”, descreve Orwell sobre o século 19. Cirurgias ao alcance de todos não são a única conquista moderna. Não morrer de dor durante o processo foi popularizado recentemente.
As evoluções cirúrgicas também possibilitaram a diminuição no número de dias que cada paciente fica sob cuidados médicos. Em 2018, o NHS registrava quatro vezes menos leitos do que quando surgiu, a despeito do robusto aumento orçamentário e da população do Reino Unido ao longo de 70 anos. Mais tempo fora dos hospitais acabou por ser outro efeito positivo do avanço da medicina ao alcance de todos.
Principal poder colonial da época, a Coroa Britânica não estendeu imediatamente a noção de saúde universal para além da metrópole. Em A Revolução dos Bichos, Orwell escreve que “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que os outros”, frase que na obra marca a distinção entre semelhantes a partir da execução real do poder. Aplicado ao caso do NHS, a mesma alusão pode ser feita, em especial pelo fato de um dos maiores avanços em termos de abrangência social no século 20 ao mesmo tempo ter representado a exclusão de boa parte dos governados pelo Reino Unido à época. Ainda assim, os visitantes do território tinham acesso ao sistema.
Por muitos anos, Brasil e Portugal seguiram um modelo que oferecia serviços a necessitados por modelos de beneficência. A Santa Casa de Misericórdia de Lisboa foi pioneira na assistência, que se espalhou pelas colônias, a cumprir papel fundamental no Brasil. Ainda assim, ambos os países instituíram seus sistemas universais de saúde muito depois, com o atendimento geral apenas em 1979 com o SNS, em Portugal, e o SUS (Sistema Único de Saúde) em 1988, no Brasil. Os dois foram instituídos após regimes autoritários e em meio a um novo contrato social entre população e Estado.
Na pandemia causada pelo Covid-19, com uma doença contagiosa como principal ameaça à nação, ficou mais notória a importância de uma atenção devida a todos, já que mesmo os detentores de planos privados padecem das consequências da circulação irrestrita do vírus. Mais forte no Brasil que em Portugal, a oposição a um sistema de saúde universal leva pouco em conta o bem-estar coletivo. Com acesso gratuito a diversas vacinas, o SUS é responsável por suprimir, ou mesmo erradicar, o contágio no Brasil de doenças infecciosas como a poliomielite e o sarampo. No caso da tuberculose, uma das grandes ceifadoras de vida no período no último século, o tratamento gratuito é fundamental para evitar a propagação da doença.
Escrito após a Guerra Civil Espanhola, o ensaio Orwell com frequência elege a morte repentina como melhor em detrimento da natural, em especial uma que emule condições do Hospital X, onde esteve em Paris. No conflito, o britânico lutou junto às milícias trotskistas do POUM, e foi alvejado no pescoço, o que por pouco não concretizou seu desejo. No caso do Hospital X, logo que teve melhoras relativas frente ao quadro de pneumonia pelo qual foi hospitalizado, Orwell fugiu do lugar.
O destino lhe reservaria uma morte por tuberculose que o fez enfrentar diversos tratamentos e mudanças de país, por conta do clima, até sua morte em 1950, aos 46 anos. Seus últimos dias foram no University College London, o que não deixa de ser uma ironia frente a seus escritos. Orwell concluiu que: “A morte ‘natural’, quase por definição, significa alguma coisa lenta, fedorenta e dolorosa. Mesmo assim, faz diferença se você pode alcança-la em sua casa e não numa instituição pública”. Mas diferente dos tempos de Paris, naquela Inglaterra já havia entrado em vigor o NHS. E Eric Arthur Blair já era George Orwell, conhecido autor de 1984. Os 70 anos que se seguiram notabilizaram Orwell junto ao grande público por romances críticos ao papel de um Estado autoritário. Mas o britânico também foi fundamental ao pensar em como a entidade pode servir a quem mais deve: seus vulneráveis.