A história da cantora brasileira que ganhou concurso de canto lírico mas não foi para Paris por ser negra

A história da cantora brasileira que ganhou concurso de canto lírico mas não foi para Paris por ser negra

Em 1918, no jornal “A Lanterna”, o escritor Lima Barreto publicou um artigo polêmico: “Aqui [no Brasil] não há um músico criador, nem grande nem pequeno. A nossa atividade musical está entregue às mulheres, ou melhor, a moças casadouras e ricas; e as mulheres raramente são criadoras”. A história está contada no livro “Metrópole À Beira-Mar — O Rio Moderno dos Anos 20” (Companhia das Letras, 492 páginas), de Ruy Castro. A “análise” do autor de “Policarpo Quaresma”, “Clara dos Anjos” e “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” é pertinente? De maneira alguma. Em termos musicais, talvez por preconceito, Lima Barreto destilava ignorância. “Naquela época”, informa Ruy Castro, “no campo da música de concerto, dentro ou fora do país, o Brasil podia se orgulhar da cantora de câmara Vera Janacópulos e da pianista Magdalena Tagliaferro, e, só no Rio, estavam em gestação musical as cantoras Elsie Houston, Zaíra de Oliveira e a muito jovem Bidú Sayão”. No campo masculino, havia, é claro, o compositor Heitor Villas-Lobos, omitido pelo escritor.

Mas quem é Zaíra de Oliveira, que, mais tarde, seria professora de música de dona Ivone Lara, a grande cantora popular? Zaíra de Oliveira era uma soprano de grandes méritos, por isso conhecida como a Marian Anderson brasileira. O apreciador de música tem sorte: é possível ouvir sua bela voz no Youtube. Quando se trata da cantora lírica, pode-se falar no “silêncio dos vencidos”? Talvez. Um autor chega a escrever que era “a mulher de Donga”. Ernesto dos Santos, o Donga, era músico e compositor. Há quem o aponte como inventor do samba, como a música “Pelo Telefone”¹.

Mas a bela voz de Zaíra de Oliveira, sua versatilidade vocal, sugere que precisa de um lugar mais adequado na história da música do país, e não apenas registros em alguns livros, como o “Dicionário Houaiss — Música Popular Brasileira” (Paracatu, 1155 páginas), organizado por Ricardo Cravo Albin, “Pixinguinha — Vida e Obra” (Lumiar, 283 páginas), de Sérgio Cabral, e “Dona Ivone Lara — A Primeira-Dama do Samba” (Sonora, 230 páginas), de Lucas Nobile, e “Uma História da Música Popular Brasileira — Das Origens à Modernidade” (Editora, 504 páginas), de Jairo Severiano.

Em 1921, o maestro Eduardo Souto, que tinha um pé no popular e um pé na música erudita, criou o Coral Brasileiro, no qual se destacaram os jovens cantores Bidú Sayão, Nascimento Silva e Zaíra de Oliveira. (Mais tarde Bidú Sayão, branca e rica, fez sucesso tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, tornando-se uma diva do Metropolitan Opera House.)

Metrópole À Beira-Mar — O Rio Moderno dos Anos 20 (Companhia das Letras, 492 páginas), de Ruy Castro.

Numa disputa contra três cantoras, Zaíra de Oliveira ganhou a medalha de ouro, em 1921, do Instituto Nacional de Música, “então o órgão superior da música erudita no Brasil”, anota Ruy Castro. A vitória também lhe deu uma viagem para a Europa, para se aprofundar nos estudos de canto lírico.

Entretanto, se pôde guardar a medalha, Zaíra de Oliveira não viajou para o exterior. Foi vetada. Ruy Castro assinala que um artigo, publicado na “Gazeta de Notícias”, de outubro de 1923, “fala da influência de um ‘pistolão’ que teria beneficiado as outras cantoras e a deixado de fora. Mas sempre se suspeitou de que ela teria sido preterida por ser negra”. O pesquisador Marcelo Bonavides² é enfático: a cantora ganhou e não levou a bolsa porque era negra. Lucas Nobile não faz concessão: “Um estúpido caso de racismo”. Ricardo Cravo Albin não titubeia: “Venceu um concurso de canto em 1921, mas não pôde receber o prêmio por ser negra”. Uma negra “falando” em nome do Brasil na Europa, pois sim, “não” era de bom tom. E ainda mais uma estrela do canto lírico, reino das divas alvas como a neve. Daí o veto. A cara do país na França, na Inglaterra e na Itália “tinha” de ser branca. “Ela nunca pôde sair [do Brasil], embora possuísse méritos para isso e seria uma sensação em Paris, se tivesse chegado lá”, sugere Ruy Castro. Logo depois, a cantora e dançarina Josephine Baker fez imenso sucesso na capital francesa. Os ases do jazz, negros, se tornarem reis das noites parisienses. “Uma soprano lírico brasileiro, bonita e negra, como Zaíra, seria uma revelação — o que a Europa só iria conhecer em 1933, com a primeira excursão ao continente da contralto americana Marian Anderson”, escreve o pesquisador.

Ruy Castro ressalva que os professores que “a julgaram e premiaram não foram os mesmos que a vetaram”. Os primeiros sabiam de seu imenso talento. Os segundos também, mas, ainda assim, decidiram boicotá-la. Citando Jotaefegê, Marcelo Bonavides sublinha que Zaíra de Oliveira era uma pessoa “simples”, mas, musicalmente, sofisticada. “Talentosa e com uma voz magnífica, Zaíra de Oliveira cantava óperas com distinção, mas não se esquecia da música popular, gravando marchas e sambas, destacando-se em todos os ritmos”, pontua Marcelo Bonavides.

Em 1921, embora jovem, Zaíra de Oliveira não era mais uma promessa. Admirada e respeitada, era uma certeza. Já em maio de 1920, quando Arthur Rubinstein executou a música de Villa-Lobos pela primeira vez, no Theatro Municipal do Rio, a soprano cantou “Lo schiavo”, de Carlos Gomes, “acompanhada por uma orquestra de oitenta figuras”, anota Ruy Castro.

Em 1922, Zaíra de Oliveira, informa Ruy Castro, “apresentara a ‘Balada do navio fantasma’, de Wagner”. O maestro Eduardo Souto, que admirava o talento de Zaíra de Oliveira, não deixava de inclui-la em seus projetos. “Em 1924, como diretor artístico da Odeon, Souto deu-lhe para gravar dezesseis foxtrotes, sambas, marchinhas, canções e cateretês, de sua autoria ou alheios, um dos quais ‘Tudo à la garçonne’. Mas o grande sucesso de Zaíra viria no começo de 1927: ‘Dondoca’, de José Francisco de Freitas, o Freitinhas, também na Odeon, que toda a cidade cantaria naquele Carnaval”, registra Ruy Castro. Marcelo Bonavides apresenta a versão de que a “estreia” em disco se deu em 1925, “quando lançou, pela Odeon Record, alguns discos da Casa Edison, entre eles o famoso foxtrote ‘Cabeleira à la garçonne’, de Américo F. Guimarães e Pedro Sá Pereira”. No mesmo ano, “lançou mais 15 músicas, várias delas cantadas com Baiano”, anota Marcelo Bonavides. O destaque era a música “Amargura”, canção de Eduardo Souto.

Em 1924, Zaíra de Oliveira brilhou num concerto da igreja matriz de Copacabana. Em 1925, no Cassino do Copacabana Palace, seria a grande homenageada. “Até o egocêntrico Catullo da Paixão Cearense cantaria para ela”, informa Ruy Castro. Marcelo Bonavides aponta que Zaíra de Olivera gravou “vários discos pela Odeon, Victor e Palophon. Alguns ao lado de Francisco Sena”. O destaque, de 1931, é “Canção dos infelizes”, de Donga e Luís Peixoto. O pesquisador informa que a soprano “integrou o trio vocal As Três Marquesas, ao lado de Alda Verona e Maria Branca Ortega. Elas gravaram ‘Guarde’ e ‘Última valsa para mim’, valsa de Walter Hirsch e De Chocolat”.

Zaíra de Oliveira integrou o Conjunto Tupy, ao lado de Yolanda Osório, J. B. de Carvalho, Francisco Sena e Herivelto Martins. “Na gravação de ‘No Terreiro de Alibibi’, de Gastão Viana, ela faz uma bela introdução com sua voz”, afirma Marcelo Bonavides.

Ao lado de Carmen Miranda, Zaíra de Oliveira cantou “Sonhei que era feliz”, de Ary Barroso. “Para não abafar a voz de Carmen com a sua” potência vocal, postula Marcelo Bonavides, o canto de Zaíra de Oliveira quase não aparece. O pesquisador acredita que ela “tenha ficado longe do microfone”.

Donga: considerado o inventor do samba

“Nos anos 30, Villa-Lobos contrataria Zaíra como sua assistente, para coordenar orfeões escolares, e ela cantaria também em clubes sociais e no rádio, acompanhada quase sempre por Pixinguinha. Mas sua principal atividade, pelas décadas afora, seria como professora de canto clássico e popular, formando inúmeras cantoras. Antes disso, em 1931, ela conheceria Donga, o pioneiro do samba e se casaria com ele”, relata Ruy Castro. A casa de Zaíra de Oliveira e Donga era frequentada por Pixinguinha, João da Baiana, Orestes Barbosa (“Chão de Estrelas”), Sylvio Caldas, Noel Rosa e Lamartine Babo. “Mas, para Zaíra, a grande história era a que ela poderia ter vivido — como a de Bidú Sayão, Vera Janacópulos, Elsie Houston — e não viveu”, lamenta.

Lucas Nobile diz que Ivone Lara foi orientada musicalmente por Lucília Guimarães Villa-Lobos, a pianista casada com o compositor Villa-Lobos, e pela “soprano de formação clássica Zaíra de Oliveira. “Zaíra estava muito longe de ser apenas a ‘Sra. Pelo Telefone. Donga à parte, ela gravara uma série de discos de 78 RPM, principalmente ao lado de um dos cantores de maior sucesso no país, Baiano, cantara com o disputado Regional de Canhoto na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Mais: compusera temas como ‘Carteira vazia’ e fizera registros, hoje raríssimos, como O Grupo da Velha Guarda, formado por Donga, Pixinguinha e João da Baiana”, conta Lucas Nobile.

A cantora Jesy Barbosa também foi aluna de Zaíra Barbosa. O pesquisador Luiz Antônio de Almeida “descobriu um disco raro de Zaíra de Oliveira, que não foi lançado nem trazia o nome de sua cantora. Trazia a gravação do samba ‘Meu Pretinho’, de autoria de Heitor dos Prazeres”. Zaíra de Oliveira teve um infarto e morreu em 15 de agosto de 1951. A cantora, que fez sucesso como cantora lírica e popular, tinha apenas 51 anos.

Notas

1 — No livro “Uma História do Samba — As Origens” (Companhia das Letras, 342 páginas), o jornalista e pesquisador Lira Neto registra: “‘Pelo Telefone’ não foi o primeiro samba a ser gravado, nem era propriamente um samba — do ponto de vista rítmico e harmônico, talvez fosse mais apropriado classificá-lo como um maxixe. Donga, portanto, não inventou um novo gênero. Inaugurou, sim, o procedimento e a estratégia de divulgar e fazer circular nos meios comerciais, de forma metódica e profissional, uma música de extração popular para ser executada durante o Carnaval. Ao registrá-la individualmente, preocupou-se em estabelecer o direito de autoria sobre uma composição coletiva e de matriz folclórica, em um tempo no qual apropriações desse tipo eram a regra e o plágio em música não constituía sequer um delito de ordem moral” (página 90). Heitor dos Prazeres compôs “Ora, vejam só”, que, surrupiada por Sinhô, tornou-se sucesso na voz de Francisco Alves. Pressionado por Heitor, Sinhô disse, com a maior cara de pau: “Samba é como passarinho, é de quem pegar primeiro” (página 161).

2 — No excelente artigo “Zaíra de Oliveira — A grande dama da canção brasileira” (encontrável na internet), o pesquisador Marcelo Bonavides diz que, ao contrário do registro tradicional, Zaíra de Oliveira nasceu em 1º de fevereiro de 1900, e não em 1891, como consta na Wikipédia e em livros. A filha da cantora e do músico Donga, a historiadora Lygia Maria dos Santos, é responsável pelo reparo.

Euler de França Belém

É jornalista e historiador.