Quando se testa positivo para a tristeza e a melancolia

Quando se testa positivo para a tristeza e a melancolia

Não me culpem pelo linguajar chulo. Estou rezando pela cartilha do novo governo. Vulgaridade acima de tudo. Sou a tiazinha do café, uma servidora pública deslocada das suas funções de origem, com nível educacional superior, mestrado, doutorado, pós-doutorado, uma qualquer cientista que servia chá de cogumelos para os presentes durante a polêmica reunião ministerial do dia 22. Acabei bebericando a iguaria. Tinha bosta de gado para tudo quanto era lado no planalto central. E, onde há esterco, florescem cogumelos a rodo. Fiquei tão doida, mas, tão doida, que resolvi, eu mesma, escrever a crônica da semana, em substituição ao cronista titular desta coluna, que testou positivo para a tristeza e a melancolia, estando temporariamente afastado do ofício. Espero que vocês gostem, porque, eu odiei cada linha. Aliás, a palavra de ordem do novo governo é mesmo essa: ódio.

Era um sujeito eclético. Não gostava de religião, nem de futebol, nem de política. Ninguém lhe botava cabresto, a não ser a polícia, o fisco e a crista-de-galo. Tinha medo de milicos selvagens, de fiscais ufanistas e de acordar com uma couve-flor brotando na glande. A vida sempre foi cheia de riscos. E de risos também. Ria para não chorar. Ria para não pirar com os sérios perrengues financeiros, éticos, morais e existencialistas por que passava.

De um momento para outro, sobrevinha o caos no planeta terraplano. O mundo-cão estava de patas para o ar. Aconteceram tantas coisas estranhas nos últimos meses. Até parecia que alguém esquecera a porta do inferno aberta. Nações ricas e pobres temiam que o pior sucedesse: um fatídico reset da humanidade. Cada um tinha o meteoro que merecia. Apesar do receio de morrer antes da hora e da falta de perspectiva de ver o país levantar-se da lona, era óbvio que ele se amarrava em sexo. Por sinal, ultimamente, vivia disso, de meter os pés pelas mãos para defender o próprio sustento. Além da mágoa e do ressentimento, não tinha outras reservas suficientes. Para o exercício da libertinagem, tinha firmeza no regulamento: nada de algemas. Era vivido o bastante para saber que havia pessoas terrivelmente hipócritas no mundo, um tipo de gente capaz de votar num doidivanas para a presidência da república, de publicar mentiras nas redes sociais e de algemar um profissional da área do entretenimento na cabeceira da cama somente para lhe surrupiar a grana.

Moreno, alto, bonito, sensual. Era um homem de meia-idade, meio triste, meio estranho, meio calvo, bonito como um soco no queixo de um racista sacripanta. Sabia que não era a solução para as dores do mundo, nem para os problemas sexuais de ninguém, mas, dava para o gasto. Tinha a experiência e o autocontrole ejaculatório ideais para conduzir as clientes até o Nirvana. Desde que a sua empresa tinha falido, após amargar três longos meses interditado pelas autoridades sanitárias competentes, defendia trampos atuando como michê num mercado que não parava de crescer no país.

Por causa da pandemia, especialistas em apocalipse previam uma queda de 15 pontos no PIB nacional, ao passo que o dólar, o desemprego, a execução de pretos e a prostituição disparariam à patamares jamais vistos na história da república. Os cabarés e os parlamentos estavam em polvorosa. A concorrência ia aumentar muito. O perrengue econômico seria global, pior ainda para um país socialmente desigual, uma nação tão lascada, mas, tão lascada, que o pão do povo sempre caía com o lado da manteiga virado para baixo.

Seus critérios de seleção eram mínimos, porém, rigorosos. Só fazia programas com criaturas do sexo feminino, embora, por puro desprezo, um dia, quase sucumbe à raiva e aceita urinar num sujeito seboso, obtuso, que pregava a volta da ditadura militar. Tudo ia mal, muito mal — embora, ele achasse que nada ia bem, nada bem — até ser contratado para um encontro com uma epidemiologista que tinha sido recentemente exonerada do Ministério da Saúde, na mesma época em que o ministro fora demitido do cargo por não concordar com o uso massivo de medicamentos sem comprovada eficácia científica no controle da praga microbiana que assolava o mundo. “Cloroquina no cu dos outros é refresco”, foram estas as suas últimas palavras, antes de ser abduzido por um disco voador. A redenção nunca foi coisa desse mundo.

Acomodados na alcova, enquanto quebrava o gelo com um martelo-de-dar-em-fascista, perguntou à doutora se ela tinha alguma fantasia de preferência, qualquer coisa, desde que não fosse algo tão sádico e tão bizarro quanto invadir uma UTI lotada para fazer selfs com moribundos afogando no seco. “Tudo, qualquer coisa, menos, beijar na boca”, ela disse, tesuda, comovida, movida por lábios suplicantes de carinho e óbvios requintes sanitários. A peste estava afetando pra valer a mente das pessoas, de mamando a caducando, deixando muitos com o miolo mole, mas, o coração empedernido.

Despiram-se. Bem atadas às nucas, as máscaras não caíam. Todo cuidado com a saúde mental ainda era pouco. Não podiam mais evitar as aglomerações. Ele, por causa do dinheiro; ela, por causa da solidão e de um tremendo desejo incontido. Ambos estavam completamente perplexos, aturdidos, desencantados com o rumo que as suas vidas tinham tomado, de uma hora para outra, no fatídico ano de 2020.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.