Ele veio com a força de um tornado levando as folhas secas que cobriam o quintal do coração dela. Foi o verão que chegou antes da hora com seu sol queimando o corpo todo, fazendo ela derreter. Colorido, com cheiro de maresia, os dias eram tão grudados quanto corpo melado de suor. Mal podiam esperar o amanhecer e já estavam entranhados um no outro, respirando das suas bocas. Ele era dela, ela era dele. Eram um só. O tempo todo. As mãos sempre entrelaçadas, beijos intermináveis que só admitiam dar lugar aos sorrisos bobos e olhares úmidos.
Eram tardes inteiras que o mundo parava para os dois. E ainda tinham fôlego para ansiar pela noite, fazer juras de amor eterno, sonhar acordados sonhos de fuga. Ele a chamava de lua… Ela era a sua Julieta e ele, o seu Romeu. A madrugada voava nas asas daquele amor sem medida, desenfreado, onde deixavam abertas as portas da profundeza de seus corações. Esse verão foi desesperadamente intenso, fervente, pegajoso.
Só ele e ela sabiam o que era viver aquele amor, sentir com todos os sentidos, cravados e afogados nesse mar de sentimentos e sensações. Um amor que doía de tão imenso, queimava o peito por não saber sobreviver longe, de sentir perdido sem as mãos juntas. Era como se tivessem sido talhados e colados de um jeito que, não se sabia onde terminava um e onde começava o outro. Eram a forma, o molde, a imagem e semelhança, um só desenho, o ying e o yang. Nada mais importava. Só precisavam deles mesmos para existir.
Donos um do outro, de corações acorrentados e almas atreladas. Ela adivinhava seus pensamentos, ele a sentia mesmo de longe. Conheciam seus olhares e a até a forma de respirar, a mania de morder os lábios e franzir a testa. Mudaram a ordem da vida porque amor como deles ninguém, nunca, jamais havia provado. E do verão rolaram no gramado de hortênsias até chegar a primavera. Essa estação tão florida, alegre, pueril! Pousaram feito borboletas monarcas que depois de tanto voar encontram seu lar. E lá construíram um mundinho azul, uma ilha só deles, seu ninho e seu porto seguro onde só cabiam os dois. Tinham o mesmo sonho de casar na praia, vestidos de branco, ela de trança, com flores no cabelo… E depois de muito champanhe mergulhar no mar embriagados de amor. Recortaram corações de papel colorido, escreveram seus votos e seus nomes na areia. Tão clichê mas tão somente deles! Queriam natureza, casa na árvore, cachorros, cavalos, passarinhos cantando na janela. Idealizaram seus filhos com os olhos grandes dela e a boca carnuda dele, a cabeleira ondulada que ele tanto amava, as mãos fortes que seguravam ela com posse, a leveza de um e a teimosia do outro. Era tudo tão lindo, romântico, promissor. Tão seguro e tão certo como um mais um são dois.
Aí veio o período de chuva. Mas tudo bem porque ela ama chuva, e ele sabe disso. O barulho das gotas se encontrando com a janela era como seus dedos quando tocava piano para sua amada. Era a mesma melodia. E quanto mais incessantemente a água descia, mais as lágrimas lhe faziam companhia. Por vezes ela teve medo das tempestades e se agarrava à ele como uma menina agarra seu bicho de pelúcia. Quando não estava, lhe dizia que faltava pouco, e que em breve estariam juntos de uma vez por todas. O cheiro de terra molhada era o que dava forças para esperar por ele, como cão que espera o dono comprar o jornal, mas tem a sensação de que ele foi para o México e não vai voltar nunca mais. Em alguns momentos ela chorou baixinho agarrada ao travesseiro que tinha o perfume dele, outros chorou aos gritos, soluçou, descontrolou…
Estavam se estranhando com uma frequência desagradável. A distância física lhes fazia sofrer de abstinência. Tornaram-se antídoto e o seu próprio veneno. Quando estavam perto se deixavam tomar por aquela onda de calor, e o cheiro de mar que inebriava. Juntos outra vez eram primavera de seu próprio jardim. Entretanto, sem se dar conta, passaram a oscilar de invernos a verões em um mesmo dia, em poucas horas.
Nessa época veio chegando o outono. Ventos gelados cortaram a pele e foram cortando camada por camada até chegar ao coração. Aquele tempo foi seco, muito seco. Algumas chuvas de lágrimas deram trégua às bocas rachadas que despejavam ofensas, ironias, ciúme malicioso. Ríspidos e frios transformaram-se em invernos rigorosos. Seus corações petrificaram, dando origem à lagos congelados e riscados de patins de gelo. Começou a falta de respeito, de confiança, a falta de vontade, inclusive, de fazer as pazes. As mãos se desprenderam e, embora soubessem o caminho de volta para casa, preferiam ficar de braços cruzados para se manterem aquecidas.
Veja bem, não era escassez de amor. Era amor por demais. O amor era tanto que por muito tempo estiveram trancafiados no quarto, desdenhando da vida lá fora. Mas a vida é madrasta, e madrasta não dá colher de chá. Não me lembro bem como as coisas foram mudando de figura. Me lembro das brigas bobas e das tantas vezes que tentaram — em vão — terminar. Me lembro da desconfiança e das acusações. Me lembro que ela passou por cima do seu orgulho, pediu perdão mesmo quando não se sentia errada, e perdoou os erros dele confessados entre soluços. Superaram juntos seus medos e inseguranças. Me lembro de quando faziam as pazes…
Até que chegou o inverno. O mais rigoroso de todos os tempos. E aquele amor foi cavalheiro, cedeu seu lugar na primeira fila para o trabalho, para a família, os amigos, noitadas, nova gente… Ele cedeu tanto que ficou sem lugar. Arrumou um cantinho perto da pilastra, mais para trás, onde espremido ainda poderia ver o palco e escutar os boleros, apesar dos gritos e ruídos. Ela dava forças para o amor, encorajava, falava no seu ouvido: Vai lá e retoma o seu lugar! Você é tão grande e forte, tão bonito e verdadeiro! Ele até que tentava mas se deixava vencer com medo de sofrer mais uma vez. Amor de coração cansado.
Então mesmo amando loucamente, sofrendo insanamente, sentindo falta do cheiro, do gosto, do abraço, da conchinha, da gargalhada, do amigo, da amante, dos apelidos, de cozinhar para ele, das rosas que ele trazia todos os sábados, das músicas que chamavam de suas…. Mesmo com tudo isso as mãos se soltaram de vez. Sem coragem de pôr um ponto final, deram-se as costas, seguindo cada um o seu atalho. Cabisbaixos, eles sabem que ninguém nesse mundo vai ser nem a metade do que foram um para o outro. Cada um com a sua mágoa, sua dor e seu fracasso. Certamente seus corações estarão para sempre unidos, assim como seus passados, memórias e sonhos partidos. Optaram por menos amor, menos intensidade, menos romantismo. Menos decepções, menos frustrações, menos desejo. Algo mais tênue. É isso. Em terra de dois corações profundos preferiram manter apenas a grama baixa, sem nada, pois ali já foi jardim das flores mais belas e raras.
Me lembro quando ele trouxe uma cerejeira bebê e plantou no jardim da casa nova, para que um dia debaixo daquela sombra pudesse contar aos filhos e aos netos como tudo começou. Ela, que não tinha jeito para plantas, tomou gosto e lhe presenteou com uma orquídea que cresceu em forma de coração.
Ele e a cerejeira. Ela e a orquídea.